Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. Dedos tamborilando produziam leves vibrações, percebidas pelo refrigerante através de suaves anéis que iam do centro à borda do copo. A luz vinha da janela grande ao lado deles, e vez por outra desenhava uma máscara de sombra em metade do rosto dos dois, mais sinistra nele, por causa da testa, mais afilada nela, por causa do nariz.
Ela pensava em falar. Falando, começaria com as bicicletas e a tranquilidade que elas transmitem.
- Como assim?
- Olha lá, aquela moça, despreocupada. Não dá pra imaginar a mesma expressão num carro no engarrafamento.
- É, o problema é quantidade. Se todos tivessem a mesma idéia de usar bicicletas, ela teria a mesma expressão de marginal parada.
- Mas ela não está. Todo mundo não teve a mesma idéia. Ela está tranquila, é isso que estou falando. Não precisa desenvolver uma teoria existencialista em torno disso.
- Ei, calma, foi só uma observação, era pra ser engraçado, não a causa da guerra santa.
- Esse é o seu problema, sempre tem que ter um porém.
- Eu não quis--
Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. A toalha quadriculada sugeria uma legítima cantina, mas os guardanapos de papel liso e ineficaz lembravam que não passava de uma lanchonete barata com uma vista legal. A luz lateral refratava nos fios de cabelo dela, deixando um rastro dourado em seu rosto.
Ele pensava em falar. Seria algo sobre como ele gosta quando a luz pega de raspão no olho dela.
- Eu gosto quando a luz pega de raspão assim no seu olho.
- Por que?
- A íris faz sombra nela mesma, dá uma textura muito mais bonita.
- Não é muito confortável.
- Mas é bonito.
- Uma história recorrente no universo feminino. Do espartilho ao salto alto.
- Ninguém aponta uma arma pra cabeça de vocês pra usar salto.
- Experimenta não usar gravata no trabalho e vê o que acontece.
- É só uma questão de combinar com os outros. Se ninguem usar, ninguém vai reclamar.
- Então vai. Pega o telefone.
- Você vai usar tênis?
- Vou usar tênis, camisa larga, sem maquiagem, sem sutiã e sem depilação.
- Ei, calma lá, sem depilação também não...
- Vamos mudar o mundo. Diga não à cera quente.
- Não precisa mudar o mundo. Mude para a França. Só não me convide.
- Vou é abrir uma comunidade no orkut...
Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. Uma corrente de ar fresco trouxe junto um agradável arrepio. Os bancos vazios, de couro falso, refletiam a luz do sol no teto, formando figuras abstratas que vibravam quando o garçom esbarrava nas mesas. Os dois pensavam em falar. Quando iam abrir a boca, chegou o garçom e trouxe o sanduíche e o milk shake. Comeram calados.
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