01 outubro 2004

Multi-eu

Os glóbulos brancos sempre me intrigaram. Milhões de células correndo pelo nosso corpo, só esperando encontrar alguma coisa estranha, pra depois, patrioticamente praticar suicídio, levando com eles o mau elemento. Abnegam de sua curta existência por um bem maior, a integridade da sociedade em que vivem. É isso, sociedade. A única coisa que distingue nossas células de uma colônia gigante de bactérias ambulante. Cada um tem seu papel específico, e o cumpre quase sempre sem reclamar.
Mesmo assim, como toda sociedade, nem sempre todos pensam da mesma maneira. Nem todos tem a mesma opinião sobre tal e tal assunto. E pior, isso não acontece apenas entre "classes", como células do fígado querendo uma coisa e as malditas células do cérebro querendo mais caipirinha. Há divergência também entre células do mesmo tipo. Isso acontece especialmente com os neurônios, os administradores e a elite cultural dessa nação-corpo.
O curioso é que, até onde se sabe, não há uma parte específica do cérebro encarregada da memória, por exemplo. Ou seja, todos os neurônios compartilham da informação, e, da mesma forma que cada um de nós testemunha um fato de maneiras diferentes, os neurônios também acabam por registrar mais de uma versão de um acontecimento, por exemplo. Isso pode retornar para o mundo como incoerências, idéias conflitantes e até mesmo disfunções de personalidade. Assim, não tem um homenzinho na minha cabeça, tem alguns milhões deles, que se agrupam e formam partidos, comitês, ongs e lobbys que, apesar de nem sempre se entenderem, convivem em relativa paz dentro de um eu, que, por influência deles, ora é de esquerda, ora de direita, ora só quer dormir e comer, ora se preocupa com as lamúrias da existência. Fica mais interessante quando tudo isso acontece ao mesmo tempo, afinal, o regime não é representativo e nem tem uma cadeira de presidente pra alguém sentar.

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