Eu gosto de cinema. De verdade, eu gosto de cinema. Eu não faço questão de pipoca. Dependendo do filme, eu não faço questão nem de companhia. Ser arrebatado por uma história bem contada por cerca de duas horas traz uma sensação de conforto que compensa o dia tedioso, a semana burocrática e todos os ônibus necessários pra chegar até ali.
Eu gosto de cinema mais do que gosto de outras artes. E acho que isso é porque o cinema é a arte onde todas as artes se encontram. Da literatura do roteiro às artes plásticas dos cenários, da música da trilha sonora à dramaturgia dos atores, o cinema entrega uma experiência completa, diverte e faz pensar, enche os olhos e os ouvidos.
Ou não.
Eu dizia que o que me incomodava no teatro era que o cinema o tinha superado em tudo. Não havia nada que o ator pudesse fazer que não ficasse melhor captado numa câmera, com possibilidades de enquadramento infinitamente maiores que o enquadramento único da poltrona do teatro, que ainda corria o risco de pegar um lugar muito no canto e perder metade da ação. Nenhuma "interação com a platéia" era suficiente para aplacar a sensação de que você poderia estar assistindo a uma apresentação medíocre, dentre tantas que os atores repetem noite após noite. O protagonista podia estar com o nariz entupido, imagine só, e toda aquela presença marcante do personagem podia ser arruinada por uma "vraze valada de um jeido beio ezguizido". Isso sem falar na própria interpretação do teatro, que exigia que o ator declamasse tudo muito alto, com pouca sutileza, sob pena do coitado da última fileira precisar assistir a peça com auxílio de uma daquelas mocinhas que moram no canto inferior direito da tv, que ficam gesticulando feito loucas nas missas eletrônicas.
Esse parágrafo cheio de verbos no pretérito imperfeito, como dá pra notar, serve pra mostrar que minha opinião mudou. Mudou justamente num dia em que eu a divulgava aos quatro ventos, durante uma visita guiada ao Theatro Mvnicipal (adoro grafias arcaicas) de São Paulo. Horas depois, fomos assistir a uma peça no Sesc Pompéia chamada Pulando Muros, da companhia XPTO.
O cenário é um campo de concentração, com arame farpado e postos de vigia. A diferença é que isso não está num palco, está na platéia. Entramos em fila por um túnel de arame farpado. Uma barricada de cadeiras de plástico emaranhadas divide o galpão. Um dos espectadores avança cauteloso e pega uma das cadeiras. Todos o acompanham e procuram um lugar pra sentar. Começa uma disputa pra ver quem põe a cadeira mais à frente, chegando quase no final do cenário. Uma sirene soa e o muro da frente começa a se mover em nossa direção, o que faz com que todos, entre sustos e risadas, se espremam no fundão. A parede volta e libera espaço para o "palco". Militares aparecem no alto de um muro recém instalado e fazem propaganda de um condomínio fechado e ultra-seguro no melhor estilo (011)1406. A platéia é convidada a morar nele, e a passagem para o outro lado do palco é liberada. Quando metade das pessoas passou para o lado de lá, fecham a entrada e dividem o público em dois. Parabenizam os privilegiados e desprezam os excluídos, pobres coitados que, em outra oportunidade, quem sabe... Isso é só pra deixar o palco no centro e começar a peça própriamente dita.
O que se segue é uma montagem genial sobre governos totalitários, rebeldia, relações humanas e limites, físicos, ideológicos, psicológicos, tudo com uma cenografia inteligente e dinâmica, onde grandes cubos de metal servem de muro, casa, caixa, prisão... Destaque para uma cena onde cobrem os cubos com plástico e enchem de gelo seco. Dentro deles, os atores reinterpretam pedaços de cenas do início da peça, em câmera lenta, surgindo da névoa e voltando a sumir, fantasmagóricos. A peça ainda conta com a temida interação com a platéia, mas de uma maneira tão envolvente que nem eu, um ferrenho opositor da prática, neguei entrar na brincadeira e ajudei no final redentor do espetáculo.
Isso não quer dizer que o teatro superou de alguma forma a minha paixão pelo cinema, mas serviu para derrubar aquela velha ideiazinha adolescente de que uma mídia é melhor do que outra. Experiência completa, nenhuma arte consegue dar. Isso é papel da vida. Se bem que, pelo menos em um aspecto, o teatro tem uma gravíssima desvantagem sobre o cinema: quem viu, viu, quem não viu, paciência. Não dá pra alugar na locadora nem comprar na internet. Uma pena.
Eu também vou tomar mais cuidado ao divulgar minhas opiniões aos quatro ventos. Semanas depois da peça, eu falava que a única coisa que realmente me incomodava em São Paulo era o trânsito. Que a poluição e a violência não me incomodavam porque raramente me atingiam. Naquela mesma noite me apontaram uma arma para a cabeça e levaram o carro que eu dirigia. Maldita boca.
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