02 maio 2005

Dançando no escuro

Luz. Uma radiação eletromagnética com comprimento de onda capaz de sensibilizar as células da retina. A retina transforma esses estímulos em impulsos elétricos que correm até o cérebro, que, de uma maneira ainda pouco conhecida, interpreta a informação e compõe uma imagem, que vale por mil desses conjuntos de letras.
A idéia era falar em como a luz (e principalmente seu produto, a imagem) é fundamental na nossa cultura (a humana, não a brasileira) em centenas de aspectos, principalmente na formação de símbolos que carregamos a vida inteira.
Mas daí eu fui ao show do Placebo.
Não que ele tenha sido um excesso de imagens, luzes e cores piscantes, foi até bem modesto, bem mais centrado na música. Aliás, cores havia poucas. A banda, preto e branco. O público, roxo, vermelho e azul nos cabelos e preto no resto, basicamente.
É que, pouco antes do show começar, depois de uma espera de quase 3 horas e 5 bandas iniciantes depois, naquele momento em que a multidão está cansada e impaciente e xinga e reclama e se espreme na ânsia de chegar mais perto do palco, uma garota de uns 20 anos com os braços apertados junto ao corpo, segurando o que parecia um feixe de canudos grossos entre as mãos, sorria e se esmagava na massa humana. Ela olhava pra tudo e pra nada ao mesmo tempo. Era cega, os canudos eram sua bengala retrátil (legal essa palavra, retrátil, vou usá-la mais vezes). Gritava, feliz, para alguém lá atrás, enquanto esperava a banda que tanto gostava.
Quando o show começou e o oceano humano deixou de ficar à deriva e se transformou em tempestade, com ondas de meio metro e rebentação perigosa, eu imaginei o que teria acontecido com a cega. Umas duas músicas depois, quando os mortos e feridos já tinham se retirado e curtir o show se tornou possível, não a vi mais.
Por que ela escolheu ficar na pista? As numeradas eram mais baratas, era menos quente e o som era o mesmo. Ela preferiu a massa, o contato, talvez ela buscasse o equivalente ao espetáculo visual no espetáculo físico. Talvez ela visse as coisas de maneira diferente, só pra usar um clichê do gênero.
Se é cegueira congênita, ela não tem memória visual, não criou um banco de referências baseado na imagem. Isso obviamente não quer dizer que ela não tenha nenhuma bagagem.
Na faculdade, desde o primeiro ano tenho lido textos de teóricos que enaltecem o texto escrito em detrimento de imagens, de sons, ou de qualquer outra coisa, alegando que praticamente toda a produção cultural vem (ou pode ter vindo) de textos-base, mais ou menos como uma música, que pode ser representada em partitura, ou um filme, que segue um roteiro.
Eu acho essa idéia bastante limitada. Limitada porque parte de um pressuposto que sugere que pensamos verbalmente. Eu não penso palavras. Se estou com fome, sinto fome, não aparece uma voz na minha cabeça dizendo n-o-s-s-a,--e-u--p-r-e-c-i-s-o--d-e--c-o-m-i-d-a.
Da mesma forma, também não penso imagens. Preciso ir ao banheiro e não me vem nenhuma foto de sanitário na cabeça.
Por isso a cega fã do Placebo não precisa da linguagem visual para curtir o show. Sorte que ela nem precisou ver a cara feia do baixista.
O texto, as imagens, a linguagem, seja ela qual for, é um código para transmitir idéias, mesmo que seja de mim para mim mesmo. Posso associar a idéia de mãe com sua imagem, com seu nome, com sua voz, mas não preciso de nada disso pra saber quem ela é. A linguagem organiza o pensamento, mas não o origina.
A comunicação perfeita seria de idéias pra idéias, sem precisar "traduzir" nada em códigos. Se é difícil conceber isso dentro de um único ser (eu precisei da linguagem para ligar idéias desconexas, como a luz e o show do Placebo, por exemplo), imaginar um diálogo de idéias puras vai além da minha capacidade. Torço pra que, se um dia alcançarmos essa empatia absoluta, o mundo não vire um grande marasmo. Um mundo onde baixistas posers reconhecem seus excessos deve ser bem sem graça.

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