27 setembro 2005

O que enobrece o homem

Eu não tenho três da tarde. Isso mesmo. Abdiquei completamente das três da tarde. Voluntariamente, ainda por cima. Dos 365 dias do ano, minhas mesmo, eu só tenho umas cem 3 horas da tarde. Eu não vejo o sol às 3 da tarde. Não sinto o vento. Não vejo filme ruim no sofá de casa, não visito a biblioteca da ECA e nem tiro a sesta depois do almoço. E não é questão de princípio moral, de convicção, nem de simples preconceito com o relógio.
Pra dizer a verdade, são mais de oito horas por dia que eu vendo por um pouco de dinheiro. Dinheiro pra sobreviver por mais 8 horas e dormir ainda outras, me preparando pra voltar ao trabalho.
O problema nem é o trabalho em si, ele pode (e deve) ser legal, instrutivo, divertido, e ajudar no desenvolvimento humano sim. Mas se esse mesmo trabalho for em uma mesma sala (ou cubículo!) fechada todos os dias da sua vida, eu vejo uma úlcera, um enfarto ou pelomenos um problema de coluna no caminho.
Eu gostaria mesmo era de trabalhar por projeto. Você se mata dois ou três meses ralando 14 horas por dia em cima de um trabalho, e depois pára por mais dois, descansando, planejando novos projetos, viajando, se dedicando a coisas relevantes pra sua vida e pros próximos projetos.
Numa rotina normal, eu consigo ler mais ou menos um livro por mês, a maior parte dele entre os solavancos do ônibus e as pescadas antes de dormir. Não posso simplesmente separar duas ou três horas seguidas pra ler porque elas simplesmente não existem, e, quando existem, o cansaço fala mais alto. Com dois meses seguidos sem rotina, posso tirar dias inteiros só pra isso. Claro que nos meses anteriores eu não teria tempo de ler nem outdoor (o que não chega a ser uma desvantagem, no caso), mas é o preço que se paga...
Pode ser só inconformismo juvenil, mas a idéia de passar anos e anos da vida como caixa de supermercado é tão atraente quanto furar os olhos com agulha quente. Pense, em que isso acrescenta o seu progresso pessoal? Claro, você vai conhecer gente nova todos os dias. Vai virar craque na maquininha do Visa Electron. Vai descobrir que existe diferença de qualidade no fornecimento de saquinhos plásticos, e que isso varia conforme o faturamento do supermercado. Vai aprender a lidar com os tipos mais excêntricos da vizinhança. Vai virar expert em leitores laser. Aliás, você poderia estudar sobre lasers, poderia aprender a ler código de barras sem o laser, poderia estudar contabilidade e entender como redes de supermercados faturam tanto, mas, apesar dos 80 guichês do seu supermercado, nunca mais do que 10 funcionam ao mesmo tempo, o que elimina qualquer hiato de mais de 3 minutos entre um cliente e outro. Seis meses depois, você passou por tudo que um caixa de supermercado pode passar. Um ano depois, se você ainda não virou um autômato, vai ser substituido por um. Que bom. Menos um emprego estagnante no mundo.
Talvez eu precise de férias.

Um comentário:

protosatori disse...

Em uma perspectiva mais positiva voce poderia acabar escrevendo o script ou ate mesmo dirigir um film como CashBack.

Da uma sacada. O cara era estudante de arte e tinha um trampo part-time em um supermercado de Londres.

Muito legal o film.

Curti seu blog by the way.