11 setembro 2005

As Horas

Poxa, é a terceira vez em menos de uma semana, disse ela, arrasada. Já havia perdido a hora do cinema, do churrasco um dia antes e agora, da apresentação que ela própria faria. Ele nunca chegava no horário. Ela já teve até que dizer que sua aula começava 40 minutos mais cedo, só pra compensar o atraso. Isso a deixava com raiva sempre, principalmente porque ele nunca pedia desculpas, só soltava um meio sorriso de "o que que eu posso fazer?". Ele se divertia com a cara fechada dela, que se fechava ainda mais. Claro que, no fim, ela acabava rindo junto com aquele pateta e tudo acabava bem. Até hoje.
Ela nao iria perdoar, não desta vez. Diria que uma coisa dessas não se faz, que se ele realmente a amasse, nunca desprezaria dessa forma um trabalho de mais de seis meses. Diria também que tinha aprendido (numa palestra de etiqueta corporativa, vejam só) que deixar alguém esperando é um grande sinal de arrogância. Era como se ele quisesse deixar claro que ela não era mais importante que dez minutos a mais de sono, ou que a maldita piadinha no final do Seinfeld. Não era possível, ele sabia muito bem o quanto ela se importava em ter tudo sob controle, especialmente o horário. Já não bastavam as centenas de quilômetros de engarrafamentos que faziam com que ela saísse duas horas antes de qualquer compromisso noturno, ela ainda tinha que contar com os atrasos do folgado. Pior, ela tinha avisado o cara-de-pau a semana toda, em ligações e mensagens, tinha relembrado do evento na noite anterior e, antes de sair, três horas antes, tinha ligado uma última vez, já que não levaria o celular (gafes polifônicas estavam entre as mais abomináveis, dizia), e enfatizado que ele não poderia chegar tarde. Claro, ele nem tinha entrado no banho ainda.
Por sorte, ela tinha decidido que ele não a pegaria em casa, iria cada um com seu carro mesmo, ela não podia se dar ao luxo de ficar à mercê da irresponsabilidade dele. Agora ela estava no lobby, contando os segundos como se tivessem apertado o grande botão vermelho do juízo final e que os vinte minutos restantes para o início da apresentação fossem os mesmos que lhe restavam de vida. E que maneira de passar os últimos minutos de vida! Esperando!
Esperando e espremendo as mãos suadas, apoiando os cotovelos nos joelhos, deselegante, e logo voltando a sentar ereta, incomodada, inconformada. Cruzando e descruzando as pernas, mexendo no cabelo cuidadosamente arrumado, conferindo toda a papelada na pasta, o cd estava lá, o roteiro também. Tomara que o Power Point colabore como no ensaio de ontem, pensou.
O pescoço esticava para tentar ver por cima das pessoas que chegavam, como se seu olhar pudesse percorrer aqueles corredores, sair pela porta, fazer o trajeto até a casa dele e puxar, como um raio trator dos filmes de ET, o desgraçado de debaixo das cobertas. Cada ser vivo que entrava no lobby era alvo de uma análise cheia de esperanças onde, num primeiro milésimo de segundo, era definido se a silhueta combinava com a dele. Então, em caso afirmativo, um segundo milésimo de segundo servia para comparar com cabelo, roupas e a cara de paspalho que ela conhecia, odiava e amava e, acima de tudo, precisava tanto. A cada negativa, ela tentava empurrar com o olhar a pessoa rejeitada, para dar espaço à que vinha atrás.
O relógio seguia, constante e incansável, agora faltavam cinco. Ela não podia esperar mais. As pessoas estavam se sentando, ela tinha que ir para o seu lugar, lá em cima. Aguentaria mais dois minutos ou cinco pessoas, o que viesse primeiro. Só por ela ter tomado essa decisão, passaram-se intermináveis trinta segundos antes que a primeira pessoa aparecesse. Mulher. Feia, ainda por cima. Ela a odiava pelo simples fato de não ser ele. Odiava também o recepcionista, tão amável com as pessoas, mas que não se dignava a sair de seu posto e buscar o atrasado. Odiava também o casal, segunda e terceira pessoas, respectivamente, que chegava esbaforido, pelo fato de eles, sem dúvida, terem cruzado com o carro dele no caminho e dado uma fechada, ou entrado na última vaga de estacionamento do quarteirão.
A quarta pessoa, homem - metade da altura dele, provavelmente - levou quarenta segundos tentando achar o convite em todos os bolsos existentes e imaginados de seu terno. Era óbvio que ela o odiava também, embora com um pouco mais de dó.
Dezessete segundos. Ela se preparava para virar o rosto em direção ao salão, mas seus olhos ainda estavam na recepção. A esperança é a última que morre. Mas morre. Foi uma morte fria, que deixa uma bola negra de vazio no estômago. As pernas se moveram, ela tentava esquecer para poder se concentrar na apresentação. Viu, com os olhos detrás da cabeça que ela herdara da mãe, um vulto entrando no salão. Virou o mais rápido que pôde sem perder o equilíbrio. Notou que o vulto tinha a altura certa. No milésimo seguinte, ela descobriria se era mesmo ele se não tivesse acordado, em um salto, no sofá do seu apartamento. Olhou o relógio, foram exatamente quarenta e cinco segundos de sono repentino. Ele estava na porta, arrumado, adiantado, impecável, dizendo, Você não vai mais?

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