11 agosto 2006

O grito Wilhelm

O que é importante para você? Que tipo de coisa é essencial para que sua vida seja aceitável? Se você tivesse viajado por muitos anos pelo espaço sideral e voltado, o que o asseguraria sem dúvida nenhuma de que você está em casa, são e salvo?
Pense bem, é uma resposta importante. Não, não é o bolo de laranja da sua mãe. Tente de novo, é alguma coisa mais presente na sua vida. Não, pegar ônibus lotado só prova que você é um mané. Resposta errada de novo. Ah, isso mesmo! É o grito Wilhelm!
Como todos estão cansados de saber, o grito Wilhelm foi gravado em 1951, para um western da Warner chamado Distant Drums, com o Gary Cooper. Em uma das cenas, um soldado é atacado por um jacaré e puxado para o fundo do lago até a morte. Como esse soldado não era bobo, ele gritou e esperneou. Só que o grito, no cinema, muitas vezes é gravado depois. Foram seis, todos eles rotulados como "homem sendo mordido por jacaré e gritando" (é assim que se rotulam os sons, para uso posterior). Um deles foi usado naquela cena, e os outros -- muito parecidos -- foram usados em cenas de ataques contra índios no mesmo filme.
E daí? Eu também não assisti a Distant Drums, mas já ouvi esse grito mais vezes do que eu consigo contar. Como os sons ficam arquivados, podem ser reutilizados em outras produções. Dois anos depois, num outro western, o som foi usado quando um personagem chamado soldado Wilhelm é atingido por uma flecha. Ele ainda foi usado mais algumas vezes em filmes da Warner dos anos 50, até sumir por uns 20 anos, quando Ben Burtt, editor de som de um filme independente que estava pra sair chamado estranhamente de Star Wars resolveu desenterrar o dito cujo e usá-lo em todos os seus filmes como uma marca registrada. O problema é que esse cara ficou famoso e fez MUITOS filmes. E fez MUITOS amigos, que gostaram da brincadeira. Assim, mais de 70 filmes gritaram com Wilelm, incluindo todos os Star Wars, todos os Indiana Jones, a grande maioria das animações da Disney, todos os Lord of the Rings, além dos filmes do Tarantino e até de um longa da Sailor Moon. Hoje em dia há pelo menos dois filmes em cartaz nos cinemas que usam o pobre: Monster House e Pirates of the Caribbean 2. Sem contar as inúmeras séries de tv e até videogames (tente matar o Goro com o Johnny Cage em Mortal Kombat I)
Veja se você não reconhece:

O curioso é que não se tem confirmação de quem gravou o grito originalmente. Ben Burtt procurou nos arquivos de Distant Drums e o mais perto que chegou foi o nome de Sheb Wooley, um cantor e ator não creditado em vários westerns (praticamente um figurante), que foi chamado para gravações de áudio posteriores. Ele morreu em 2003, antes de ser procurado para esclarecer o caso.
Moral do dia: nunca se esqueça do copyright, ou seu salto duplo twist carpado pode passar de Dos Santos para Wilhelm.

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04 agosto 2006

Os Vários Apocalipses de Coppola

Já que os dias andam curtos, vai uma crítica velha de um filme que não envelhece, da época que eu tentava emprego no Omelete.

Francis Ford Coppola devia estar bem acostumado a adjetivos como “megalomaníaco” durante as 370 horas de filmagens nas Filipinas de sua obra Apocalypse Now. Meses de esforço, rios de dinheiro e muita teimosia foram necessários para finalizar o filme a tempo do festival de Cannes de 1979. Mesmo com a Palma de Ouro nas mãos, o diretor e produtor considerou o filme “a work in progress”, devido à pressa na montagem da obra.
Vinte e dois anos depois somos agraciados com bem mais do que um novo “director’s cut” caça-níqueis de um sucesso de Hollywood, como exorcistas e ETs afins. Redux, em latim, significa algo que foi trazido de volta, resgatado. Assim está Apocalypse Now Redux: reeditado, remixado, restaurado, talvez o melhor termo seja repensado. Agora podemos ver 53 minutos que escaparam à primeira versão, espalhados em muitas cenas que acrescentam muito à densidade do filme.
Densidade, aliás, é o que não falta à obra. Vários filmes poderiam ser tirados de Apocalyspe. A grande estetização da guerra das cenas como a do ataque dos helicópteros a uma vila vietnamita ao som de Wagner e a da batalha num posto avançado, com direito a trincheiras e pedido de ajuda pelo rádio já renderiam boa bilheteria por si sós (alguém se lembra de Falcão Negro em Perigo?). A discussão sobre a necessidade do conflito armado e o envolvimento forçado dos soldados com uma guerra que não lhes pertence (linha mestra do outro clássico do Vietnã, Nascido Para Matar) e que pode ser visto em personagens como Chef, o hippie de New Orleans que só queria aprender a cozinhar, ou em cenas como o encontro com a orgulhosa família de colonizadores franceses, onde o lado mais politizado do filme transparece, também fariam outro (bom) filme inteiro.
Mas o créme de la créme do filme é mesmo a adaptação (bastante fiel, vejam só) da pequena obra-prima de Joseph Conrad, Coração das Trevas. O Marlow do Império Britânico deu lugar ao Willard do exercito americano. Ambos foram imbuídos da difícil tarefa de subir o rio em direção ao inferno, encontrar e destituir o tirano, mas ainda assim genial e intrigante capitão Kurtz de seu pequeno império no coração das trevas. Quanto mais Marlow/Willard se embrenha na escuridão da não-civilização, quanto mais medo e destruição se passam ao seu redor, mais fascinado por Kurtz ele fica, mais ele compreende seus métodos, mais ele se transforma, de certa forma, em seu algoz. A estranha fortaleza de Kurtz e sua pequena legião de súditos que parecem estar em transe preparam os nervos até que o encontro com Kurtz finalmente acontece, e toda a genialidade de Vittorio Storato, o diretor de fotografia, aparece: Curiosos, ouvimos a voz assustadora de Marlon Brando, fraca, modulada, filosofando e questionando Willard e esperamos a câmera enquadrá-lo. Ele está deitado, e ainda não se vê seu rosto. Finalmente, ele se levanta. Dá para ver sua cabeça raspada, mas seu rosto está imerso numa sombra angustiante. Ainda por algum tempo a sombra permanece, até a primeira frase mais ameaçadora ser pronunciada e seus terríveis olhos azuis finalmente aparecerem. É de gelar a espinha...
Isso tudo sem falar no Robert Duvall bombardeando uma aldeia para ter onde surfar, no Dennis Hopper tentando provar a grandiosidade do capitão Kurtz, nas coelhinhas da Playboy e na maravilhosa The End, da banda The Doors na abertura do filme.
Toda essa multiplicidade de temas e riqueza de detalhes, porém, acaba por se tornar talvez seu maior defeito. Uma obra tão complexa precisa estar muito bem amarrada para conduzir o espectador por mais de três horas. Quando se está na fortaleza de Kurtz, à luz oblíqua, é difícil lembrar do “Cheiro de Napalm pela manhã” do início do filme. Apocalypse Now Redux é mais denso que o próprio livro que o inspirou. Pode ser necessário parar e respirar fundo antes de continuar para, sem sobrecarregar a mente, se absorver todo o conteúdo. Só não dá pra ficar sem ver.

17 maio 2006

Tabula Rasa

Não fosse o regular e preciso oscilar do pêndulo (ou a frequência de corrente elétrica no cristal de quartzo, ou a frequência de ressonância nos átomos de césio), eu podia jurar que o tempo está mesmo passando mais rápido. Pode perguntar pra qualquer um, cada ano que passa, todos dizem, "puxa, esse ano passou voando!". Certo seria dizer que o tempo realmente acelera, afinal, se 100% das pessoas tem a mesma impressão, faz sentido aceitar isso como verdade. Não? Claro que não. Então por que a idéia é tão difundida?
Quando temos, digamos, 10 anos, um ano acrescenta um décimo a mais em nossa vida. A base de comparação é muito pequena e cada dia parece que demora pra passar. Quando temos 50 anos, um ano não passa de uma nota de rodapé no caderno, um cinquentaavos de existência. Como o tempo é praticamente o mesmo para todos (já que ainda não chegamos na velocidade da luz), abastecemos nossos cérebros na mesma velocidade, sejam eles um copinho de requeijão ou uma piscina olímpica.
Seguindo esse raciocínio, é estranho pensar que simplesmente não nos lembramos de nada da eternidade que foram nossos primeiros 2 ou 3 anos de vida. Devem ter sido longos, com tudo absolutamente novo, marcando nossas mentes em branco com tinta forte, mas arquivados na pasta escondida do "subconsciente". Adoro quando vejo um bebê de poucos meses observando a própria mão. Ele olha, gira, olha em cima, embaixo, mexe os dedos, toca as enormes bochechas, e - o objetivo supremo - tenta engolir a mão inteira.
Algumas das coisas que aprendemos se fixam como uma espécie de arquétipo. Para mim, por exemplo, passarinho sempre vai ser, primeiramente, ligado com o monte de pardais que vivem em Araraquara. Eu sabia de pombos e outros pássaros, mas passarinho mesmo, eram os pardais. Quando falam em árvore, eu também ligo imediatamente com os abundantes Oitis da terra natal. Mesmo anos depois, dos 10 aos 15 anos, algumas coisas me marcaram ao ponto de me influenciarem para sempre, como os livros do Julio Verne e os contos do Edgar Allan Poe. Eles criaram um novo padrão de comparação na minha cabeça, onde tudo que veio depois é posto na balança junto com esses primeiros.
Esse ciclo se repete vez por outra, novos padrões são adicionados (Umberto Eco, o cinema do Stanley Kubrick e o som do Led Zeppelin são exemplos mais recentes), e a vida vai crescendo.
Mas me sinto um pouco incomodado por perceber que o período mais importante da minha vida, a "programação", o que mais formou o meu jeito de ver o mundo, também é o que eu menos me lembro. Gostaria de saber o que estou perdendo.

24 fevereiro 2006

Todas as Artes

Eu gosto de cinema. De verdade, eu gosto de cinema. Eu não faço questão de pipoca. Dependendo do filme, eu não faço questão nem de companhia. Ser arrebatado por uma história bem contada por cerca de duas horas traz uma sensação de conforto que compensa o dia tedioso, a semana burocrática e todos os ônibus necessários pra chegar até ali.
Eu gosto de cinema mais do que gosto de outras artes. E acho que isso é porque o cinema é a arte onde todas as artes se encontram. Da literatura do roteiro às artes plásticas dos cenários, da música da trilha sonora à dramaturgia dos atores, o cinema entrega uma experiência completa, diverte e faz pensar, enche os olhos e os ouvidos.
Ou não.
Eu dizia que o que me incomodava no teatro era que o cinema o tinha superado em tudo. Não havia nada que o ator pudesse fazer que não ficasse melhor captado numa câmera, com possibilidades de enquadramento infinitamente maiores que o enquadramento único da poltrona do teatro, que ainda corria o risco de pegar um lugar muito no canto e perder metade da ação. Nenhuma "interação com a platéia" era suficiente para aplacar a sensação de que você poderia estar assistindo a uma apresentação medíocre, dentre tantas que os atores repetem noite após noite. O protagonista podia estar com o nariz entupido, imagine só, e toda aquela presença marcante do personagem podia ser arruinada por uma "vraze valada de um jeido beio ezguizido". Isso sem falar na própria interpretação do teatro, que exigia que o ator declamasse tudo muito alto, com pouca sutileza, sob pena do coitado da última fileira precisar assistir a peça com auxílio de uma daquelas mocinhas que moram no canto inferior direito da tv, que ficam gesticulando feito loucas nas missas eletrônicas.
Esse parágrafo cheio de verbos no pretérito imperfeito, como dá pra notar, serve pra mostrar que minha opinião mudou. Mudou justamente num dia em que eu a divulgava aos quatro ventos, durante uma visita guiada ao Theatro Mvnicipal (adoro grafias arcaicas) de São Paulo. Horas depois, fomos assistir a uma peça no Sesc Pompéia chamada Pulando Muros, da companhia XPTO.
O cenário é um campo de concentração, com arame farpado e postos de vigia. A diferença é que isso não está num palco, está na platéia. Entramos em fila por um túnel de arame farpado. Uma barricada de cadeiras de plástico emaranhadas divide o galpão. Um dos espectadores avança cauteloso e pega uma das cadeiras. Todos o acompanham e procuram um lugar pra sentar. Começa uma disputa pra ver quem põe a cadeira mais à frente, chegando quase no final do cenário. Uma sirene soa e o muro da frente começa a se mover em nossa direção, o que faz com que todos, entre sustos e risadas, se espremam no fundão. A parede volta e libera espaço para o "palco". Militares aparecem no alto de um muro recém instalado e fazem propaganda de um condomínio fechado e ultra-seguro no melhor estilo (011)1406. A platéia é convidada a morar nele, e a passagem para o outro lado do palco é liberada. Quando metade das pessoas passou para o lado de lá, fecham a entrada e dividem o público em dois. Parabenizam os privilegiados e desprezam os excluídos, pobres coitados que, em outra oportunidade, quem sabe... Isso é só pra deixar o palco no centro e começar a peça própriamente dita.
O que se segue é uma montagem genial sobre governos totalitários, rebeldia, relações humanas e limites, físicos, ideológicos, psicológicos, tudo com uma cenografia inteligente e dinâmica, onde grandes cubos de metal servem de muro, casa, caixa, prisão... Destaque para uma cena onde cobrem os cubos com plástico e enchem de gelo seco. Dentro deles, os atores reinterpretam pedaços de cenas do início da peça, em câmera lenta, surgindo da névoa e voltando a sumir, fantasmagóricos. A peça ainda conta com a temida interação com a platéia, mas de uma maneira tão envolvente que nem eu, um ferrenho opositor da prática, neguei entrar na brincadeira e ajudei no final redentor do espetáculo.
Isso não quer dizer que o teatro superou de alguma forma a minha paixão pelo cinema, mas serviu para derrubar aquela velha ideiazinha adolescente de que uma mídia é melhor do que outra. Experiência completa, nenhuma arte consegue dar. Isso é papel da vida. Se bem que, pelo menos em um aspecto, o teatro tem uma gravíssima desvantagem sobre o cinema: quem viu, viu, quem não viu, paciência. Não dá pra alugar na locadora nem comprar na internet. Uma pena.


Eu também vou tomar mais cuidado ao divulgar minhas opiniões aos quatro ventos. Semanas depois da peça, eu falava que a única coisa que realmente me incomodava em São Paulo era o trânsito. Que a poluição e a violência não me incomodavam porque raramente me atingiam. Naquela mesma noite me apontaram uma arma para a cabeça e levaram o carro que eu dirigia. Maldita boca.

20 janeiro 2006

Mais do Mesmo

...E existem as bandas grandes e as bandas legais. Simples assim. Quer ver? O Pink Floyd é uma banda grande. Enorme, aliás. O Pearl Jam também. São bandas que fazem música que entra pra história, bandas que podem ser ouvidas pela qualidade técnica, pela sonoridade, pelas letras. São bandas que tem seus bateristas e guitarristas (e, mais raramente, alguns baixistas também) imitados ad infinitum não só por outras bandas, mas por garotos de 15 anos loucos por uma identidade e uma influência, que descobrem o instrumento justamente por causa dessas bandas. São bandas que conseguem unir carisma, técnica e sucesso comercial. Bandas raras, portanto.
Do outro lado, mas ainda no País da Boa Música, estão as bandas legais. São bandas completamente inacessíveis a quem não passou pelas bandas grandes, ainda que seu som seja tecnicamente inferior. São bandas como The Flaming Lips, Primal Scream e Teenage Fanclub. Bandas que, mesmo com um um som grudento, simples e de letras engraçadinhas'barra'românticas, acabam ganhando fãs no real sentido da palavra, fanáticos, seguidores mais devotos que os que vestem camisetas pretas adornadas com cabeludos mal encarados do metal pesado.
Mas por que, afinal, pra gostar de Yo La Tengo é necessário ter o ouvido acostumado com Beatles e afins?
Porque as bandas legais só são legais por um motivo: elas reciclam (ou digerem, como queiram) várias pequenas inovações que as grandes bandas fizeram e acrescentam um pouco de cotidiano, de conversa mole, de dilemas que já foram resolvidos.
Aliás, o que é a nossa vida além da repetição de dilemas previamente resolvidos por outras pessoas em outras épocas? Chegamos uns após outros invocando os mesmos problemas, encontrando as mesmas soluções. Vez por outra, uma combinação sai excêntrica demais, e algo realmente novo surge, como um riff de Jumpin´Jack Flash. Claro que isso não nos impede de ter uma vida única e inovadora, pois mesmo Mozart ou Spielberg tiveram seus momentos de serem pegos cutucando o nariz ou de terem que escolher entre decepcionar alguém e decepcionar a si mesmos. E isso na maior parte do tempo.
Ouvir bandas legais é como ler uma crônica. É como assistir a um episódio de Anos Incríveis ou ler uma tirinha do Calvin. É se olhar no espelho, mesmo que não seja muito profundamente, sentir pela primeira vez aqueles mesmos sentimentos que todo mundo já sentiu antes. E gostar.

04 janeiro 2006

Fear and Loathing in Rio de Janeiro

Diário de missionário, Rio de Janeiro, 21 de Julho de 2003
Encarem isso como o filme Lost in Translation. Não é um tratado oficial sobre um lugar estrangeiro, é apenas uma fatia de cotidiano subjetivo.
Depois de quase cairmos num buraco de uns 5m de profundidade que simplesmente brotou no meio da calçada, percebemos de quantas nós escapamos todos os dias. Segue uma breve lista:
  • Queimaduras de terceiro e quarto graus por causa do sol;
  • ser atropelado no meio da rua por ônibus, moto, carro ou caminhão;
  • ser atropelado no meio da calçada por ônibus, moto, carro ou caminhão;
  • ser atropelado dentro de casa por ônibus, moto, carro ou caminhão;
  • cair num estrategicamente colocado no meio da calçada;
  • cair do alto de um morro;
  • cair em um valão (um canal de esgoto a céu aberto);
  • beber água contaminada;
  • comer comida contaminada;
  • ser mordido por um mosquito contaminado;
  • ser mordido por um cachorro doente;
  • ser mordido por um rato doente;
  • ser mordido por uma criança doente;
  • urina de morcego na cabeça (sim, aconteceu comigo);
  • estar no lugar errado na hora errada e levar um tiro certo;
  • não informar as horas com um sotaque suficientemente engraçado e levar um tiro;
  • levar um tiro sem motivo;
  • intoxicação por causa da poluição;
  • intoxicação por causa da fumaça de pneus queimados;
  • ser atingido por um balão de São João e morrer em chamas;
  • ter a cabeça decepada por linha de pipa;
  • ser mordido por uma lacraia no chuveiro;
  • morrer com a explosão do chuveiro;
  • morrer com qualquer outro tipo de explosão;
  • ser atravessado por um vergalhão enferrujado pendente de um muro qualquer;
Mas nós concordamos que a maneira mais interessante de se morrer no Rio é tentar pronunciar porrrrrrrta com o sotaque deles e engasgar com a própria saliva.

15 novembro 2005

Mil Quilômetros




Em outro post eu falei em como o Google Earth colocou em perspectiva o meu mundo. Pois bem, dia desses, brincando com a ferramenta que mede distâncias do programa, descobri algo que me colocou mesmo no meu lugar. Depois de achar o extremo oposto da terra em relação ao lugar onde nasci (um ponto no mar, ao sul do japão) e de sair medindo nerdisticamente tudo quanto é canto, resolvi descobrir o quanto eu conheço de fato do mundo. Medi os extremos do mundo que já visitei e descobri que a maior distância não passa de mil quilômetros. Sim, patéticos mil quilômetros, entre Camboriú, que visitei em 2000, e o Pico da Bandeira, em 2002.
Eu era o pior dos caipiras, que nunca pisara fora do próprio quintal em 23 anos de vida. Todo o conhecimento que tenho do mundo além dessa barreira foi adquirido "por tabela". Na prática, eu sabia empiricamente quase tanto quanto algum camponês da idade média, por exemplo.
A diferença é que eu não me sinto, nem nunca me senti alienado assim. Com 3 anos de idade eu já sabia que a Itália tinha o formato de uma bota. Com 8, eu sabia como funcionava a cadeia alimentar nas planícies da África de tanto ver programas educativos na Cultura. Hoje eu sei diferenciar e imitar um sotaque escocês ou australiano sem nem mesmo ter conhecido gente de lá.
Extendendo o assunto, provavelmente conheço a alma humana mais por ter lido Dostoiévsky e visto Antes do Amanhecer do que por ter vivido revéses na minha própria vida. Isso é triste e difícil de admitir. Não que minha vida tenha sido exatamente tediosa, ou que eu não tenha querido aprender nada com ela, talvez seja a quantidade de informação "formal" que sufoque os pequenos aprendizados práticos do dia-a-dia.
Li (ou vi, o meio é irrelevante) em algum lugar uma pesquisa que comparava a eficácia da mente em registrar informação aprendida na teoria e na prática. Como era de se esperar, vivenciar qualquer coisa fica muitas e muitas vezes mais bem registrado na memória do que apenas ler sobre o assunto.
Quero crer que ainda vou ter chances de fixar melhor o que tenho absorvido de segunda mão. Viver os dilemas de um Raskolnikov, ou mesmo de um personagem de Magnólia, tirar minhas próprias conclusões de outros povos e de si mesmos como o casal de Lost In Translation, ou quem sabe só aprender a aproveitar mais a rotina que tenho, mesmo que a barreira dos mil quilômetros não seja quebrada tão cedo.

15 outubro 2005

Geopolítica

Se a USP fosse a Europa, a ECA seria a Romênia. A única vantagem em ser a Romênia é não ser a Albânia, que é a FFLCH.
Atr. Luli Radfahrer

Desdobrando o raciocínio, vejamos:

A Sanfran está mais pra Inglaterra, isolada e aristocrática. A Medicina pode ser a Suíça, alheia a tudo que acontece ao redor. A FAU, a Itália, com grande importância artística, mas pouca influência política. A FEA é a França - já que os óbvios Estados Unidos ficam do outro lado do Atlântico. A Poli é a Alemanha, claro. A Bio fica bem de Suécia. A Veterinária, a Espanha. Odonto, Dinamarca. A Holanda acomoda a Química com conforto. A Psicologia é a Bélgica e a FOFITO é a Finlândia. Mais alguém?

27 setembro 2005

O que enobrece o homem

Eu não tenho três da tarde. Isso mesmo. Abdiquei completamente das três da tarde. Voluntariamente, ainda por cima. Dos 365 dias do ano, minhas mesmo, eu só tenho umas cem 3 horas da tarde. Eu não vejo o sol às 3 da tarde. Não sinto o vento. Não vejo filme ruim no sofá de casa, não visito a biblioteca da ECA e nem tiro a sesta depois do almoço. E não é questão de princípio moral, de convicção, nem de simples preconceito com o relógio.
Pra dizer a verdade, são mais de oito horas por dia que eu vendo por um pouco de dinheiro. Dinheiro pra sobreviver por mais 8 horas e dormir ainda outras, me preparando pra voltar ao trabalho.
O problema nem é o trabalho em si, ele pode (e deve) ser legal, instrutivo, divertido, e ajudar no desenvolvimento humano sim. Mas se esse mesmo trabalho for em uma mesma sala (ou cubículo!) fechada todos os dias da sua vida, eu vejo uma úlcera, um enfarto ou pelomenos um problema de coluna no caminho.
Eu gostaria mesmo era de trabalhar por projeto. Você se mata dois ou três meses ralando 14 horas por dia em cima de um trabalho, e depois pára por mais dois, descansando, planejando novos projetos, viajando, se dedicando a coisas relevantes pra sua vida e pros próximos projetos.
Numa rotina normal, eu consigo ler mais ou menos um livro por mês, a maior parte dele entre os solavancos do ônibus e as pescadas antes de dormir. Não posso simplesmente separar duas ou três horas seguidas pra ler porque elas simplesmente não existem, e, quando existem, o cansaço fala mais alto. Com dois meses seguidos sem rotina, posso tirar dias inteiros só pra isso. Claro que nos meses anteriores eu não teria tempo de ler nem outdoor (o que não chega a ser uma desvantagem, no caso), mas é o preço que se paga...
Pode ser só inconformismo juvenil, mas a idéia de passar anos e anos da vida como caixa de supermercado é tão atraente quanto furar os olhos com agulha quente. Pense, em que isso acrescenta o seu progresso pessoal? Claro, você vai conhecer gente nova todos os dias. Vai virar craque na maquininha do Visa Electron. Vai descobrir que existe diferença de qualidade no fornecimento de saquinhos plásticos, e que isso varia conforme o faturamento do supermercado. Vai aprender a lidar com os tipos mais excêntricos da vizinhança. Vai virar expert em leitores laser. Aliás, você poderia estudar sobre lasers, poderia aprender a ler código de barras sem o laser, poderia estudar contabilidade e entender como redes de supermercados faturam tanto, mas, apesar dos 80 guichês do seu supermercado, nunca mais do que 10 funcionam ao mesmo tempo, o que elimina qualquer hiato de mais de 3 minutos entre um cliente e outro. Seis meses depois, você passou por tudo que um caixa de supermercado pode passar. Um ano depois, se você ainda não virou um autômato, vai ser substituido por um. Que bom. Menos um emprego estagnante no mundo.
Talvez eu precise de férias.

11 setembro 2005

As Horas

Poxa, é a terceira vez em menos de uma semana, disse ela, arrasada. Já havia perdido a hora do cinema, do churrasco um dia antes e agora, da apresentação que ela própria faria. Ele nunca chegava no horário. Ela já teve até que dizer que sua aula começava 40 minutos mais cedo, só pra compensar o atraso. Isso a deixava com raiva sempre, principalmente porque ele nunca pedia desculpas, só soltava um meio sorriso de "o que que eu posso fazer?". Ele se divertia com a cara fechada dela, que se fechava ainda mais. Claro que, no fim, ela acabava rindo junto com aquele pateta e tudo acabava bem. Até hoje.
Ela nao iria perdoar, não desta vez. Diria que uma coisa dessas não se faz, que se ele realmente a amasse, nunca desprezaria dessa forma um trabalho de mais de seis meses. Diria também que tinha aprendido (numa palestra de etiqueta corporativa, vejam só) que deixar alguém esperando é um grande sinal de arrogância. Era como se ele quisesse deixar claro que ela não era mais importante que dez minutos a mais de sono, ou que a maldita piadinha no final do Seinfeld. Não era possível, ele sabia muito bem o quanto ela se importava em ter tudo sob controle, especialmente o horário. Já não bastavam as centenas de quilômetros de engarrafamentos que faziam com que ela saísse duas horas antes de qualquer compromisso noturno, ela ainda tinha que contar com os atrasos do folgado. Pior, ela tinha avisado o cara-de-pau a semana toda, em ligações e mensagens, tinha relembrado do evento na noite anterior e, antes de sair, três horas antes, tinha ligado uma última vez, já que não levaria o celular (gafes polifônicas estavam entre as mais abomináveis, dizia), e enfatizado que ele não poderia chegar tarde. Claro, ele nem tinha entrado no banho ainda.
Por sorte, ela tinha decidido que ele não a pegaria em casa, iria cada um com seu carro mesmo, ela não podia se dar ao luxo de ficar à mercê da irresponsabilidade dele. Agora ela estava no lobby, contando os segundos como se tivessem apertado o grande botão vermelho do juízo final e que os vinte minutos restantes para o início da apresentação fossem os mesmos que lhe restavam de vida. E que maneira de passar os últimos minutos de vida! Esperando!
Esperando e espremendo as mãos suadas, apoiando os cotovelos nos joelhos, deselegante, e logo voltando a sentar ereta, incomodada, inconformada. Cruzando e descruzando as pernas, mexendo no cabelo cuidadosamente arrumado, conferindo toda a papelada na pasta, o cd estava lá, o roteiro também. Tomara que o Power Point colabore como no ensaio de ontem, pensou.
O pescoço esticava para tentar ver por cima das pessoas que chegavam, como se seu olhar pudesse percorrer aqueles corredores, sair pela porta, fazer o trajeto até a casa dele e puxar, como um raio trator dos filmes de ET, o desgraçado de debaixo das cobertas. Cada ser vivo que entrava no lobby era alvo de uma análise cheia de esperanças onde, num primeiro milésimo de segundo, era definido se a silhueta combinava com a dele. Então, em caso afirmativo, um segundo milésimo de segundo servia para comparar com cabelo, roupas e a cara de paspalho que ela conhecia, odiava e amava e, acima de tudo, precisava tanto. A cada negativa, ela tentava empurrar com o olhar a pessoa rejeitada, para dar espaço à que vinha atrás.
O relógio seguia, constante e incansável, agora faltavam cinco. Ela não podia esperar mais. As pessoas estavam se sentando, ela tinha que ir para o seu lugar, lá em cima. Aguentaria mais dois minutos ou cinco pessoas, o que viesse primeiro. Só por ela ter tomado essa decisão, passaram-se intermináveis trinta segundos antes que a primeira pessoa aparecesse. Mulher. Feia, ainda por cima. Ela a odiava pelo simples fato de não ser ele. Odiava também o recepcionista, tão amável com as pessoas, mas que não se dignava a sair de seu posto e buscar o atrasado. Odiava também o casal, segunda e terceira pessoas, respectivamente, que chegava esbaforido, pelo fato de eles, sem dúvida, terem cruzado com o carro dele no caminho e dado uma fechada, ou entrado na última vaga de estacionamento do quarteirão.
A quarta pessoa, homem - metade da altura dele, provavelmente - levou quarenta segundos tentando achar o convite em todos os bolsos existentes e imaginados de seu terno. Era óbvio que ela o odiava também, embora com um pouco mais de dó.
Dezessete segundos. Ela se preparava para virar o rosto em direção ao salão, mas seus olhos ainda estavam na recepção. A esperança é a última que morre. Mas morre. Foi uma morte fria, que deixa uma bola negra de vazio no estômago. As pernas se moveram, ela tentava esquecer para poder se concentrar na apresentação. Viu, com os olhos detrás da cabeça que ela herdara da mãe, um vulto entrando no salão. Virou o mais rápido que pôde sem perder o equilíbrio. Notou que o vulto tinha a altura certa. No milésimo seguinte, ela descobriria se era mesmo ele se não tivesse acordado, em um salto, no sofá do seu apartamento. Olhou o relógio, foram exatamente quarenta e cinco segundos de sono repentino. Ele estava na porta, arrumado, adiantado, impecável, dizendo, Você não vai mais?

16 agosto 2005

The Next Generation

Os anos oitenta foram terríveis. Imagine um dia em 1986. Você acorda com seu rádio relógio, uma caixa preta com números verdes brilhantes, tocando Tears for Fears, e isso já é motivo suficiente pra pular da janela. Com um tapa no enorme botão snooze, você volta a dormir, só pra ser acordado dez minutos depois pela Cindy Lauper. Você pensaria em pôr uma bala na cabeça, mas você não é gótico, aquela gente estranha da qual você só ouve falar.
Você resolve encarar o novo dia e se levanta. A margarina do seu pão é de má qualidade, igual ao seu xampu e ao seu carro, mas você nem percebe, a falta de oferta desestimula a demanda.
Se você for mulher, meus pêsames, você dormiu mal tentando não estragar o permanente do cabelo, vai ter que usar batom vermelho, brincos de argola do diâmetro de pulseiras, calça acima do umbigo e, pasme, blusa com ombreiras. Sim, ombreiras.
Se você for homem, sua sorte não é menos sombria. Basta dizer que seu modelo de beleza é algo que inclua o bigode do Magnum e o mullet do McGyver.
Reagan e Thatcher massacraram tudo que foi sonhado nos anos 60 e 70, deixaram que os irmãos caçulas dos hippies, de terno e gravata, tomassem conta do mundo. A involução foi tão séria que O Bebê de Rosemary virou Freddy Krueger, Todos os Homens do Presidente virou Rambo e Laranja Mecânica virou Porky's.
Encrustrado nesse império, um pequeno vilarejo (que poderia estar na Gália) sobreviveu e se fortaleceu. Se fortaleceu baseado em alguns fatores: Apesar da má-qualidade geral da produção cultural, os quadrinhos viraram coisa séria, com graphic novels que exploraram psicologia e política, como Watchmen e Dark Knight.
O Heavy Metal teve sua era de ouro, incorporando elementos da música erudita e ficando realmente ensurdecedor.
O RPG se consolidou, aproveitando elementos do recém criado universo cyberpunk e resgatando a obra de Tolkien, cultuada pelos hippies e por George Lucas.
Surgiram os Videogames e os computadores começaram a se tornar pequenos o bastante pra caber numa mesa.
Todos esses elementos contribuiram para a criação daquele que é o símbolo da resistência oitentista:


o nerd - aqui representado pelo traço do nerd supremo, Matt Groening.
A gestação de uma geração de nerds começou no fim dos anos 70, é verdade, mas foi no final dos 80 que eles ganharam voz ativa na sociedade. Gente como Bill Gates e Steve Jobs abriu a possibilidade de ser nerd e rico ao mesmo tempo, um feito absolutamente impensável até então. Matt Groening e Kevin Smith foram além: bem-sucedidos, divulgaram o estilo nerd como "legal" em suas obras, expondo a sociedade a níveis perigosos de piadinhas por segundo, e sempre dando um jeito de encaixar alguma referência a Star Wars.
A internet amplificou o alcance de nerdisse exponencialmente. No início, apenas nerds sabiam fazer home pages, assim o usuário comum ia se contaminando com listas de discussão sobre o Monty Python, salas de chat de trekkies e páginas e mais páginas de passwords e truques de video games.
Mesmo com toda essa divulgação, a raça está fadada ao extermínio. A falta de atividades físicas e de traquejo social torna os nerds seres pouco desejáveis para o sexo oposto. Uma pena que isso não aconteça com integrantes de boy bands, que insistem em espalhar perigosamente seus genes pelo mundo.

16 julho 2005

Enter the Matrix

O mais atroz instrumento de tortura do Universo é o Vórtice de Perspectiva Total. Ele é tão terrível, tão horrívelmente mau, tão inconcebivelmente danoso que tem que ficar escondido em um planeta extremamente hostil e isolado, que apenas os seres merecedores de tal sina têm o desprivilégio de conhecer.
Seu funcionamento é simples, baseado na análise extrapolativa da matéria, onde, a partir de uma parte aleatória do cosmos, como um pedaço de pão-de-ló, por exemplo, toda a vastidão, todo o incomensurável tamanho e amplitude do Universo, bem como sua história desde o surgimento, suas civilizações, guerras, modismos, programas de tv, cada grão de areia de cada asteróide, é mostrado num só instante, somado a uma pequena seta vermelha indicando "Você está aqui". O infinito contraste entre o gigante Universo e a insignificante vítima quebra o espírito de qualquer ser vivente, que percebe que o mundo definitivamente não gira em torno de seu umbigo e, se não morre instantaneamente, fica irremediavelmente catatônico para o resto da vida.
A razão de ele ter sido inventado por alguém que queria irritar sua esposa não é importante para este post, mas é melhor explicada na fonte, o segundo livro da série O Guia do Mochileiro das Galáxias, O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams.
O primo pobre do Vórtice de Perspectiva Total foi lançado dias atrás pelo grande deus google e se chama Google Earth.
Lembra daquela animação no final de Men In Black, quando a câmera vai subindo, subindo, subindo, sai da Terra, do sistema solar, da galáxia, até mostrar o Universo dentro de uma bola de gude de um ET? É mais ou menos o que o Google Earth faz, com fotos de satélite da Terra inteira (INTEIRA!), sobre um esqueleto 3D, que pode ser movimentado, girado, ampliado e inclinado. O resultado é tão impressionante que dá pra ver desde uma região inteira, detalhes do relevo como o Everest e o Corcovado, até imagens bastante detalhadas das cidades maiores, como a USP ou a minha casa. Tente digitar o nome de absolutamente qualquer cidade do mundo (tipo Caparaó, Brazil), que ele acha. Em alguns lugares (leia-se EUA), dá pra achar qualquer endereço. Com um pouco mais de prática, dá pra descobrir bancos de dados adicionados por usuários com curiosidades como "John Lennon viveu aqui", ou "o lado mais fácil para escalar esta montanha". Dá também pra colocar a câmera no nível da rua e "passear" por Manhattan, por exemplo. Literalmente um mundo virtual.
O que mais me impressionou, entretanto, foi o fato de ter, pela primeira vez, uma noção real de perspectiva do tamanho das coisas. Ver a Terra distante se aproximando, definindo continentes, países, regiões, vendo florestas e rios, vendo a mancha cinzenta da cidade se transformar em pequenos prédios até chegar na própria casa é, no mínimo, revelador. Mostra, entre outras coisas, que (a) o mundo é grande, (b) nós somos pequenos, (c) tem lugar pra todo mundo e (d) viver em Diadema não é tão ruim assim, vocë podia ter nascido no deserto de Gobi.
O programa ainda tem muito pra progredir, como fazer o mundo inteiro (e não só as grandes cidades), em alta definição e ampliar a cobertura de endereços e estabelecimentos comerciais, mas isso é só questão de tempo. Will you take the Red Pill?

04 julho 2005

Guerra dos Mundos

Da série Diários de Missão no Rio, em 4 de Julho de 2003:
Passar o 4 de julho numa casa com três americanos republicanos não é pra qualquer um. Bandeirinhas abundam, e a ânsia por fogos de artifício só é (mal) confortada pelos rojões constantes dos traficantes do Complexo do Alemão. Felizmente, o dia transcorreu tranquilo, ninguém teve rompantes ufanistas-patrióticos. E isso é um avanço. Não que eu seja contra os EUA, pois não sou. Seria como ser contra o automóvel, por exemplo. Polui, mata, mas também traz muitos benefícios. Nem por isso eu cantaria o Hino do Automóvel no dia de sua invenção...

***

Acho que não tenho idade suficiente pra entender a vantagem do patriotismo. Basicamente, ser patriota é ter orgulho e do lugar de onde se vem, certo? E defendê-lo sempre que necessário, certo? Gostar dos seus. Isso cheira demais a segregação pro meu gosto. Por que eu tenho que torcer pra um cidadão que eu nunca vi mais azul na minha frente? Vou usar um exemplo mais extremo: o carinha que foi preso na Indonésia com quilos e quilos de droga e agora foi condenado a morte. O que nos une? O fato de comermos arroz e feijão todos os dias? Termos nascido numa mesma região com o mesmo clima? Falarmos a mesma língua? Assistirmos à Globo?
Tenho muito mais afinidade com um finlandês que leu Edgar Allan Poe na adolescência ou com um marroquino que gosta de fotografia digital do que com qualquer jogador da seleção brasileira.
Saber quem você é, descobrir suas origens e aprofundar as relações com as pessoas mais próximas são alguns dos bons resultados do patriotismo. Acontece que há caminhos muito melhores, que evitam passar pelo "sou brasileiro e não desisto nunca".
Como se governa uma área geográfica com milhões de pessoas que tem pontos de vista às vezes completamente diferentes de como se devem administrar as coisas? Um povo não deveria pensar, pelo menos em alguns pontos essenciais, da mesma forma? Se não pensa, ainda é um povo?
Só não consigo imaginar uma olimpíada sem fronteiras. Já toquei no assunto aqui. As modelos ganhariam provas que exigissem leveza. Os devotos de Nossa Senhora ganhariam medalhas em provas de resistência. Marxistas levariam provas coletivas. E os canhotos? ganhariam o quê?

01 julho 2005

The horror, the horror!

Algum lugar no Vietnã, no auge da guerra: Uma criança olha, chorosa, homens cavando a sepultura de seu pai. Ela segura um retrato dele, menos de 30 anos, magro e forte. Sujeitos, também magros, mas nada fortes, enterram lentamente a pá no chão arenoso, enfileirando mais uma cova entre as dúzias improvisadas ali. É um trabalho difícil, consome horas de esforço que poderiam estar sendo gastas na reconstrução e manutenção das casas e da lavoura.
Corta para o caixão, improvisado, de madeira recém-serrada, ao lado de um feixe de incenso queimando. A mãe do falecido, debruçada sobre a tampa, chora vigorosamente. A criança se aproxima, com o retrato ainda nas mãos, e chora também.
Mais um corte, o caixão está sendo baixado. A mãe, inconformada, se abaixa e tenta pular na cova, gritando pelo filho perdido. Dois homens a puxam de volta, consolando o inconsolável. São cenas longas e tristes, 3, 4 minutos terríveis.
Corta para um enorme jardim, verde, com um lindo lago sombreado pelas árvores. No terço esquerdo do quadro, um homem de uns 60 anos, óculos de aro grosso e terno risca de giz é identificado como General Westmoreland, um dos principais líderes dos EUA na guerra.
Visivelmente desconfortável, o Gen declara pausadamente, escolhendo as palavras:

The Oriental doesn't put the same high price on life as does the Westerner.
Life is cheap in the Orient.
Sim, é exatamente o que você leu. Ele disse: "Os orientais não valorizam tanto a vida como os ocidentais. A vida é barata no oriente". Entre outras coisas que eu não me lembro palavra por palavra.
Seu nome é emblemático. Não quer dizer nada literalmente, mas Westmoreland lembra algo como "terra mais ao ocidente", "das terras mais ao ocidente" ou quem sabe "mais terra para o ocidente".
Em outra cena, um militar tem uma conversa com um grupo de crianças de 7 ou 8 anos numa escola americana. Elas faziam as perguntas. Uma delas quis saber como era o Vietnã. Ele respondeu "Se não fosse pelas pessoas, seria um país bonito. Eles são um povo atrasado e não civilizado." Em outra cena, um líder vietnamita diz "Nós temos 5 mil anos de história. Nos defendemos durante séculos da China. Durante décadas da França, e nos defendemos agora dos Americanos."
Isso faz parte do documentário Hearts and Minds, rodado no calor da hora no vietnã e nos EUA, um filme panfletário, feito com o propósito bem claro de mostrar os horrores da guerra aos americanos. É praticamente o pai do Michael Moore.
Também como Michael Moore, Peter Davis manipula o filme do começo ao fim. A sequência descrita no começo é só um exemplo. Também comete o erro de ouvir só um lado da história (apesar de ser o lado mais fraco), o que enfraquece a idéia de documentário. Mas, diferente de seu sucessor, Davis aparentemente não põe palavras na boca de ninguém e nem supõe teorias conspiratórias assim ou assado. Ele constrói sua mensagem com imagens e depoimentos como um escritor faz com palavras. Sua retórica, entretanto, parece muito mais honesta do que a do gorducho de Michigan, além de ser mais contundente. Afinal, ninguém passa incólume ao ver a menina queimada de napalm correndo pela estrada. Como disse um dos veteranos mutilados e arrependidos sobre os EUA, naquela guerra "nós não estávamos do lado errado. Nós éramos o lado errado".

16 junho 2005

Indubitavelmente

Indubitavelmente.
Foi o que ela ouviu do companheiro de tantos anos, assim, sem razão. Porque indubitavelmente não era uma palavra para todos os dias, nem para todos os usos. Podia ter sido um sim, claro, sem dúvida, é, com certeza, é lógico, aham, como não, positivo, isso mesmo, todos seguidos de ponto final, ou um ou mais pontos de exclamação enfatizando, desconfiando ou simplesmente exclamando, mas por que indubitavelmente?? Nem era uma palavra bonita. Era um tanto arrogante, mas decidida e elegante. Algo parecido com o Al Pacino de mau humor. E, é claro, é uma palavra que não deixa dúvidas. Igual ao Al Pacino. A não ser desta vez.
O que ele quis dizer com aquilo? Que ele era melhor do que ela? Que, na verdade, a pergunta dela não tivesse assim tanta importância? Que todos aqueles anos juntos nos quais a palavra indubitavelmente nunca fora mencionada e as coisas estiveram tão como sempre estiveram, no fundo não foram suficientes? Era isso, ele iria trocar seu relacionamento por um advérbio?
Talvez não. Talvez fosse quase isso. Talvez as coisas estarem tão como sempre estiveram fosse um problema a ser combatido. Indubitavelmente iria abrir as portas para Transubstanciação e Verossimilhança, e um novo mundo polissílabo de compreensão e amabilidade iria aflorar entre eles.
Foi o que aconteceu. Ela aprendeu a conviver com o indubitavelmente. Gostou, tanto que hoje em dia se recusa a usar menos de 3 sílabas por palavra. Mesmo que a pergunta que tenha iniciado tudo isso tenha sido um breve "você me ama?"

30 maio 2005

Diálogo de Fim de Tarde

Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. Dedos tamborilando produziam leves vibrações, percebidas pelo refrigerante através de suaves anéis que iam do centro à borda do copo. A luz vinha da janela grande ao lado deles, e vez por outra desenhava uma máscara de sombra em metade do rosto dos dois, mais sinistra nele, por causa da testa, mais afilada nela, por causa do nariz.
Ela pensava em falar. Falando, começaria com as bicicletas e a tranquilidade que elas transmitem.
- Como assim?
- Olha lá, aquela moça, despreocupada. Não dá pra imaginar a mesma expressão num carro no engarrafamento.
- É, o problema é quantidade. Se todos tivessem a mesma idéia de usar bicicletas, ela teria a mesma expressão de marginal parada.
- Mas ela não está. Todo mundo não teve a mesma idéia. Ela está tranquila, é isso que estou falando. Não precisa desenvolver uma teoria existencialista em torno disso.
- Ei, calma, foi só uma observação, era pra ser engraçado, não a causa da guerra santa.
- Esse é o seu problema, sempre tem que ter um porém.
- Eu não quis--

Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. A toalha quadriculada sugeria uma legítima cantina, mas os guardanapos de papel liso e ineficaz lembravam que não passava de uma lanchonete barata com uma vista legal. A luz lateral refratava nos fios de cabelo dela, deixando um rastro dourado em seu rosto.
Ele pensava em falar. Seria algo sobre como ele gosta quando a luz pega de raspão no olho dela.
- Eu gosto quando a luz pega de raspão assim no seu olho.
- Por que?
- A íris faz sombra nela mesma, dá uma textura muito mais bonita.
- Não é muito confortável.
- Mas é bonito.
- Uma história recorrente no universo feminino. Do espartilho ao salto alto.
- Ninguém aponta uma arma pra cabeça de vocês pra usar salto.
- Experimenta não usar gravata no trabalho e vê o que acontece.
- É só uma questão de combinar com os outros. Se ninguem usar, ninguém vai reclamar.
- Então vai. Pega o telefone.
- Você vai usar tênis?
- Vou usar tênis, camisa larga, sem maquiagem, sem sutiã e sem depilação.
- Ei, calma lá, sem depilação também não...
- Vamos mudar o mundo. Diga não à cera quente.
- Não precisa mudar o mundo. Mude para a França. Só não me convide.
- Vou é abrir uma comunidade no orkut...

Se olhavam. Ele deste, ela daquele lado da mesa. Uma corrente de ar fresco trouxe junto um agradável arrepio. Os bancos vazios, de couro falso, refletiam a luz do sol no teto, formando figuras abstratas que vibravam quando o garçom esbarrava nas mesas. Os dois pensavam em falar. Quando iam abrir a boca, chegou o garçom e trouxe o sanduíche e o milk shake. Comeram calados.

17 maio 2005

Teoria da Evolução

Em 1993 eu me preocupava em virar gente (afinal, estava na 5a série) e em zerar o maior número de vezes seguidas o Mario (13 foi meu recorde. Maldita queda de energia!) no meu Nintendinho 8-bits.
Então aconteceu o assalto. Tínhamos viajado quando levaram tudo de casa (felizmente meu Nintendinho estava comigo), inclusive a tv. A TV! O manancial infinito de informação e entretenimento! O que eu iria fazer da vida?
Uma tia nos emprestou um radinho durante uns 3 meses destelevisionados. Eu passei a ouvir algumas rádios da cidade o dia inteiro e um novo mundo se abriu. Até então, meu conhecimento musical se resumia a Roxette e à coleção de LPs dos meus pais, constituida, na maior parte, de álbuns menores de gente maior como Ray Charles, Paul McCartney e Chico Buarque. Nada muito sério, ou nada que me despertasse muita atenção. Mas agora eu tinha ao meu alcance pérolas como Pump Up The Jam e Everybody Dance Now!. Poucas coisas sobreviveram (ainda bem!), como Mr. Jones do Counting Crows e What´s Going On do For Non Blondies. Obrigado, ladrões, sem vocês eu não teria conhecido o Vanilla Ice.
Nos anos seguintes, um grande amigo vindo de sampa me apresentou a Jovem Pan, o programa Pânico, e toda a coleção de Dance Music do mundo. Foram 4 anos de plagiadores inexpressivos como Double You e Wighfield na orelha, ao ponto de eu ouvir na tv um trechinho de Wonderwall e dizer, "ei, esses caras copiaram a música daquela mina do cd da Jovem Pan!"
Aos 16, mais amizades me apresentaram ao Bon Jovi, Aerosmith e Guns N´Roses. Todo mundo tem que começar por algum lugar, mesmo que seja por Always.
Ao mesmo tempo, com outros amigos, conheci o Heavy Metal do Metallica, o que me fez vender por uma ninharia todos os meus cds toscos. No Heavy Metal eu fiquei por um bom tempo, até um dia, quando varria as folhas do quintal e prestei atenção nos versos de uma música dos Beatles que meu pai estava ouvindo. As partes que me atingiram foram "sitting on a cornflake / waiting for the van to come" e "Elementary penguin singing Hare Krishna / Man, you should have seen them kicking Edgar Allan Poe". Tinha alguma coisa séria ali. Era mais interessante do que qualquer coisa que eu ouvia.
Por acaso, no cursinho, um amigo tinha um amigo que estava vendendo uns 30 cds. Peguei a lista e vi vários dos Beatles, vários do Pink Floyd, vários do Led Zeppelin, entre outras preciosidades. Curioso como estava com o rock clássico, levei uns 8. Até hoje eu me pergunto o que deu na cabeça desse sujeito. Seja lá o que tenha sido, agradeço todas as noites.
O caminho óbvio, então, era descobrir as referências de músicos tão bons. Blues! Com mais alguns amigos, virei frequentador dos escassos shows bluezeiros de Araraquara.
Então veio a ECA. Ah, a ECA... ela não me fez trocar o Led Zeppelin (até porque, lá toca bastante) por nada, mas me apresentou a coisas tão diferentes quanto Chico Science, Weezer e Dave Matthews. Certos amigos me apresentavam o Funk Como Le Gusta, outros analisavam Queen, e outros viajavam com Charlie Parker. E eu levava um pedaço de cada amigo pra loja de discos, cruzando referências, caçando as minhas próprias pérolas.
Hoje, se me perguntam que tipo de música eu gosto, respondo exatamente com a frase que eu detestava ouvir de pessoas que escutam música por inércia: "Eu? Sou bastante eclético."

02 maio 2005

Dançando no escuro

Luz. Uma radiação eletromagnética com comprimento de onda capaz de sensibilizar as células da retina. A retina transforma esses estímulos em impulsos elétricos que correm até o cérebro, que, de uma maneira ainda pouco conhecida, interpreta a informação e compõe uma imagem, que vale por mil desses conjuntos de letras.
A idéia era falar em como a luz (e principalmente seu produto, a imagem) é fundamental na nossa cultura (a humana, não a brasileira) em centenas de aspectos, principalmente na formação de símbolos que carregamos a vida inteira.
Mas daí eu fui ao show do Placebo.
Não que ele tenha sido um excesso de imagens, luzes e cores piscantes, foi até bem modesto, bem mais centrado na música. Aliás, cores havia poucas. A banda, preto e branco. O público, roxo, vermelho e azul nos cabelos e preto no resto, basicamente.
É que, pouco antes do show começar, depois de uma espera de quase 3 horas e 5 bandas iniciantes depois, naquele momento em que a multidão está cansada e impaciente e xinga e reclama e se espreme na ânsia de chegar mais perto do palco, uma garota de uns 20 anos com os braços apertados junto ao corpo, segurando o que parecia um feixe de canudos grossos entre as mãos, sorria e se esmagava na massa humana. Ela olhava pra tudo e pra nada ao mesmo tempo. Era cega, os canudos eram sua bengala retrátil (legal essa palavra, retrátil, vou usá-la mais vezes). Gritava, feliz, para alguém lá atrás, enquanto esperava a banda que tanto gostava.
Quando o show começou e o oceano humano deixou de ficar à deriva e se transformou em tempestade, com ondas de meio metro e rebentação perigosa, eu imaginei o que teria acontecido com a cega. Umas duas músicas depois, quando os mortos e feridos já tinham se retirado e curtir o show se tornou possível, não a vi mais.
Por que ela escolheu ficar na pista? As numeradas eram mais baratas, era menos quente e o som era o mesmo. Ela preferiu a massa, o contato, talvez ela buscasse o equivalente ao espetáculo visual no espetáculo físico. Talvez ela visse as coisas de maneira diferente, só pra usar um clichê do gênero.
Se é cegueira congênita, ela não tem memória visual, não criou um banco de referências baseado na imagem. Isso obviamente não quer dizer que ela não tenha nenhuma bagagem.
Na faculdade, desde o primeiro ano tenho lido textos de teóricos que enaltecem o texto escrito em detrimento de imagens, de sons, ou de qualquer outra coisa, alegando que praticamente toda a produção cultural vem (ou pode ter vindo) de textos-base, mais ou menos como uma música, que pode ser representada em partitura, ou um filme, que segue um roteiro.
Eu acho essa idéia bastante limitada. Limitada porque parte de um pressuposto que sugere que pensamos verbalmente. Eu não penso palavras. Se estou com fome, sinto fome, não aparece uma voz na minha cabeça dizendo n-o-s-s-a,--e-u--p-r-e-c-i-s-o--d-e--c-o-m-i-d-a.
Da mesma forma, também não penso imagens. Preciso ir ao banheiro e não me vem nenhuma foto de sanitário na cabeça.
Por isso a cega fã do Placebo não precisa da linguagem visual para curtir o show. Sorte que ela nem precisou ver a cara feia do baixista.
O texto, as imagens, a linguagem, seja ela qual for, é um código para transmitir idéias, mesmo que seja de mim para mim mesmo. Posso associar a idéia de mãe com sua imagem, com seu nome, com sua voz, mas não preciso de nada disso pra saber quem ela é. A linguagem organiza o pensamento, mas não o origina.
A comunicação perfeita seria de idéias pra idéias, sem precisar "traduzir" nada em códigos. Se é difícil conceber isso dentro de um único ser (eu precisei da linguagem para ligar idéias desconexas, como a luz e o show do Placebo, por exemplo), imaginar um diálogo de idéias puras vai além da minha capacidade. Torço pra que, se um dia alcançarmos essa empatia absoluta, o mundo não vire um grande marasmo. Um mundo onde baixistas posers reconhecem seus excessos deve ser bem sem graça.

07 abril 2005

O Bem do Século

Algumas pessoas merecem ser cumprimentadas no post-mortem. Pessoas que, como se diz, estavam séculos à frente de seu tempo. Parei pra pensar em alguns, e me lembrei de quatro. Os quatro viveram nos últimos anos do século XIX e início do XX, o que me leva a crer que esse período foi séculos à frente de si próprio. O que não faz muito sentido.
Pois bem, três deles, lá no post-mortem, devem ter filas quilométricas de admiradores todos os dias querendo cumprimentá-los (coisa que não deve ser muito problema, tempo eles têm): Os irmãos Lumière e Thomas Alva Edison. Listar todos os inventos e conseqüências dos inventos dos dois seria longo e cansativo, basta pensar que, se não fosse por eles este blog seria mimeografado (se bem que Edison inventou uma ferramenta que auxilia na velocidade do mimeógrafo), e todos ficariam cheirando as folhas por causa do álcool.
O terceiro personagem (ou a terceira personagem, como gostava minha professora de português), apesar do prodígio e talento, é praticamente um desconhecido da maioria. Winsor McCay era desenhista. Ele desenhava histórias em quadrinhos em jornais. Revolucionário, não? Sim, revolucionário. Ele fez coisas assim e assim. Ele fez o primeiro curta de animação, 4 mil desenhos à mão, incluindo o cenário. Ele excursionava para mostrar seus trabalhos pelos EUA e interagia com os desenhos, conversando com Gertie, a dinossauro, ao vivo. Ele influenciou a arte sequencial como poucos, ele merece um aperto de mão.
Acho ótimo quando descubro que tal personalidade escreveu sua grande obra, fez seu grande filme ou aprendeu a profissão na qual se tornou mestre, com mais de trinta anos. Little Nemo in Slumberland saiu quando McCay tinha 38 anos. Isso me dá esperança de ainda produzir alguma coisa útil. Odeio Mozart e seu virtuosismo de 4 anos de idade. Odeio Álvares de Azevedo, que já tinha escrito a obra de sua vida e até morrido com a minha idade. Não vou cumprimentá-los no Limbo. Vou ficar admirando, de longe... Mesmo porque, ouvi dizer que Mozart é meio excêntrico e não gosta de apertos de mãos.
Pensando agora, lembrei de mais um punhado de memoráveis desse mesmo período: Alexander Graham Bell, Albert Einstein, Sigmund Freud, Santos Dumont, Henry Ford... Boa safra.

23 março 2005

Paulicéia Desvairada

Chovia e eu não acreditava em guarda-chuvas. Continuo não acreditando, mas eu tinha que concordar com o tempo verbal. Me recuso a usar um objeto tão nefasto, incômodo e inútil, que carrega a mentira no seu próprio nome. Duvido que alguém tenha saido ileso com um deles depois de cem metros em chuva moderada. Nada de capas de chuva, nada de chapéus esdrúxulos. Até hoje, a única invenção humana que permite andar na chuva sem se molhar é o automóvel. Mas isso não tem nada a ver com o que eu queria dizer.
Pois bem, chovia e eu me molhava no ponto de ônibus. Eu ouvia música no walkman e me preocupava com a integridade física do Saramago dentro da minha mochila, uma vez que, como já se sabe, chovia. Quando meus sapatos já estavam uns três tons mais escuros e minha camiseta já assimilava as gotas salpicadas, a chuva parou, mas só na metade esquerda do meu corpo. "Vai uma ajuda aí?" falou um homem mais ou menos da minha idade com um guarda-chuva. Eu disse um "opa, obrigado!" e tirei o fone esquerdo do ouvido, me preparando pra conversa.
Dez segundos, eu não disse nada. Nem ele. Vinte segundos, nada. Buscava assunto na memória, pensei em arriscar até um "e essa chuva, hein?", mas desisti. O guarda-chuva pingava no meu braço direito tudo o que não caía no esquerdo. Chegamos em 40 segundos de silêncio desconfortável. O ônibus chegou, ele subiu, eu fiquei. Me molhando.
Se eu fosse menos paulista... Se a necessidade de falar com o rapaz que foi educado com o guarda-chuva me incomodasse mais, se a curiosidade de falar com aquela bela estranha do ônibus me incomodasse mais do que o medo de incomodar ou de parecer bobo e a preguiça de tirar a bunda do banco encardido do coletivo, quem sabe o quanto eu não teria crescido. Quantas idéias eu perdi, quantos amigos eu perdi, por medo de perder o maldito Status Quo. Se eu fosse menos paulista...

14 março 2005

Amoródio

141 km de lentidão, o maior congestionamento do ano. O do ano passado foi de 191km, então ainda estamos no lucro. Rebelião na Febem, morte na esquina, a marginal fedida, sujeira na rua, obras tão mal feitas que têm que ser reformadas um mês depois de inauguradas, pobreza vendendo chiclete, demora, muita demora para chegar em qualquer lugar.
E eu não me canso desse mundo.
Não consiguiria viver feliz em cidade pequena. Não consiguiria viver fora dos centros de produção cultural. Araraquara é limpinha. Araraquara é bonitinha. Araraquara é chata. Os poucos que se mexem pra fazer a vida andar por lá são frustrados pela burocracia ou pelo pouco público e acabam procurando outros ares, normalmente mais poluídos. Uma cidade onde o teatro fica fechado no sábado à noite, uma cidade que tem DUAS livrarias não merece muito respeito. Ainda mais quando uma delas é uma Nobel.
Em 10 milhões de pessoas, por outro lado, é fácil achar umas centenas que frequentam regularmente cinemas, teatros e exposições. Umas centenas que se apóiam pra produzir cultura e se acotovelam pra assistir cultura. Não sei aonde isso vai me levar, mas espero que fique entre Nova Iorque, Tóquio, Londres, Milão, Cid. do México, Paris e São Paulo.

02 março 2005

Na minha época...

Há muito, muito tempo atrás, numa galáxia distante, as pessoas tinham vidas completamente diferentes. Ali, quando as pessoas são convidadas para dançar funk e black music, elas colocam costeletas e calças boca-de-sino.
Ninguém fica irado por ter que sentar em móveis toscos, pois estes são considerados de muito bom gosto numa sala mais rústica.
Estão relaxando os que não arrumam suas coisas, e não os que estão de férias.
Queimar CDs é um ato cruel da inquisição.
Azeite é comida, não um estilo de vida.
A3 é sempre menor que A4.
Ai meu ciático.

14 fevereiro 2005

Perdido

Fomos a um supermercado em Ubatuba, enquanto a mulherada passeava pela inevitável feirinha, procurar coisas pro churrasco que se seguiria. Corríamos, pois já estava anoitecendo. O tempo é preciosíssimo nesses feriados perfeitos e nada é melhor que desperdiçá-lo deliciosamente deitado numa rede batendo papo. Na porta do supermercado, junto dos carrinhos, tinha um cartaz impresso em letras grandes por uma família preocupada, com criança doente e um pouco de dinheiro, já que ofereceu até recompensa pelo cachorro desaparecido. Labrador, de alguma cor que teimou em desaparecer da minha memória, devia ser um cachorro maravilhoso. Menos por um detalhe. Culpa dos cachorros, que ao longo dos séculos convivendo com os humanos, aprenderam a associar alguns sons específicos a si próprios. Se você treinar um cachorrinho a vida inteira chamando ele de Analgésico, ou de Caps Lock, ele vai atender. Só não podemos subestimá-los. Essa família desrespeitou deliberadamente o bom senso do cachorrinho quando ele passou a fazer parte do círculo familiar. Provavelmente foi o filho mais velho, o de 11 anos que veio com a idéia: "Ele vai chamar Lost!" Lóstchi, abrasileirando. Ninguém perguntou o porquê. Era bonitinho. Ah, se eles soubessem... Se eles soubessem que o cachorrinho crescia com um nome como uma maldição. Fadado a um destino terrível, o pequeno animal se assustava só de chegar perto do portão da casa, temendo que sua hora tivesse chegado. Era ver a coleira de passeio, ele corria pra dentro da casinha. Mas o inevitável aconteceu. Bastou um passeio, e lá se foi Lost cumprir sua sina. Deixou a criança doente. Aceitou seu destino. Hoje, não quer ser encontrado. Vive na praia, brincando de pular ondas e correr atrás de uma maria-farinha que aparece de vez em quando. Ainda atende pelo nome de Lost, se alguém adivinhar.

03 fevereiro 2005

Gordinhos

Confesso, estava forçando a veia criativa ao tentar achar algum assunto interessante na internet. Passei por funcionários da Microsoft que compram I-Pods, por uma senhora que confessou ter colado na prova de literatura em 1957, e até por um elefante que aprendeu a usar a privada. Resolvi procurar as notícias estranhas por popularidade, e depois, pelas que receberam as notas mais altas. Oddly Enough, a notícia com a nota mais alta era, pasmem, Lula, Brazilians, to Fight Flab Together, ou Lula e brasileiros lutam juntos contra a flacidez. Sim, segundo a Reuters, o presidente estaria lançando uma campanha publicitária que incentive a prática de esportes e o emagrecimento da população. Seria uma resposta aos estudos e reportagens (inclusive aquela no New York Times, que retrata três turistas gordinhas da rep. Tcheca como brasileiras) que mostram que o país está ficando gordo.
Engraçado que eu não achei a notícia em nenhum site brasileiro. Achei até que o Lula vai fazer uma cirurgia pra tirar a tal carne esponjosa do nariz, o que, todos nós esperamos, vai ajudar a melhorar a respiração e a voz maltratada do nosso querido gordinho barbudo, mas nada de campanha anti-obesidade.
O que o mundo ganha com essas notícias? Se são verdadeiras, por que a imprensa brasileira não diz nada? Rabo-preso com a indústria de doces? Seríamos nós alvo de uma campanha difamatória para destronar a Gisele Bundchen do posto de top model mais importante do mundo? Ou seria um maquiavélico estratagema de Barbados, o destino turístico concorrente do Brasil no ranking mundial, para desviar a cota anual de turistas que buscam um lugar paradisíaco com pessoas magras?
De qualquer maneira, o que me preocupa mesmo é como a notícia do Lula ganhou nota mais alta que a maior invenção desde o tira-grampos, a torradeira que desenha a cara do ursinho pooh.

27 janeiro 2005

Cantos obscuros

Pelo que se sabe, o termo apareceu lá por 1858, por influência do francês, obscurantisme. Por lá, parece que a palavra é só uns 40 anos mais velha. Palavra nova, portanto, se comparada com parentes mais camonianos, mas ainda assim está longe de ser um neologismo como blogueiro. O Houaiss define a palavra assim:

Obscurantismo
1 estado de quem se encontra na escuridão, de quem está privado de luz
2 falta de instrução; ignorância
3 atitude, doutrina, política ou religião que se opõe à difusão dos conhecimentos científicos entre as classes populares

Engraçado como ela, palavra tão interessante, tenha saido só esses dias da casa de sua prima, a obscuridade. E saiu chutando a porta: do limbo pro caderno Mais! da Folha e pra capa da Veja na mesma semana, além de outras aparições esporádicas menos importantes em cadernos de opinião e blogs do país afora. Nem a Roseana Sarney conseguiu tanto (ela só conseguiu a Veja, coitada) nas prévias das eleições de 2002.
Foi o significado que entrou na moda ultimamente ou será que foi só um "copia do meu que eu copio do seu" entre jornalistas? Bom, com exceção de algumas horas no Rio de Janeiro uns dias atrás, não tem havido nenhum apagão significativo, portanto o significado núm 1 não deve ser. A ignorância nunca saiu de moda, as atitudes exclusivistas também não, o que inocenta os outros significados de causarem essa ressureição. O que nos deixa com a última alternativa...
Claro que, vira e mexe, o pessoal desenterra alguma palavra velha (vide tosco, balada, sinistro) e a transforma na gíria mais supimpa do pedaço, morou?, mas quando a imprensa começa a ruminar os próprios clichês a coisa começa a ficar preocupante. Nada contra a palavra obscurantismo, eu já estava mesmo cansado de ouvir reacionário, elitista ou simplesmente burro. Pena que é bem provável que daqui uns meses ela, cansada de ser usada tantas vezes em tão pouco tempo, vai cair no saco escuro de palavras esquecidas, pra fazer companhia pra muvuca, e vai esperar a próxima da lista, a tsunami chegar.

16 janeiro 2005

Code 46

- Ni-Hao!
- Ni-Hao!
- Você tem um filho, nes pas?
- Isso mesmo.
- Chico ou Chica?
- Chico.
- Ele deve ser especial.
- Ele é especial.
- Todas as crianças são. Isso me faz pensar de onde vêm os adultos medíocres.

Sabe o Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley? Então, tenta misturar com a idéia de "lavou, tá novo" mental do Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Conseguiu? Tá, agora coloca o clima noir futurista do Blade Runner (não deve ser difícil, Admirável... também é futurista). Agora, por mais estranho que pareça, coloque pitadas de Lost in Translation, mas sem o humor. Ambiente tudo isso num futuro com poucas árvores, nenhum país, apenas Cidades-Estado absolutamente cosmopolitas, com pessoas de todas as raças, falando uma língua que é a salada de expressões estrangeiras do começo do post. As máquinas existem, exatamente do jeito que existem hoje: câmeras, caixas automáticos, identificadores, computadores. Nada de robôs andando pra todos os lados. E eu achando que Minority Report tinha uma visão de futuro realista...
São tantos os assuntos tratados no filme que e é impressionante que ele não descambe pra lado nenhum. Não é todo dia que aparece um filme tão completo, tão coerente e tão belo.

05 janeiro 2005

Escreveu, não leu...

O interior tem suas vantagens. Uma delas é ter uma cachoeira perdida no meio de um canavial, 40 minutos distante da porta de casa. Ficar debaixo daquela água toda é uma terapia e um desafio. Junto com velhos amigos, então, fica mais divertido.
Divertido também é encerrar a manhã com as famosas coxinhas douradas de Bueno de Andrada. Sim, são famosas. São muito boas também. E são levemente douradas. Ficaram famosas quando o ilustre araraquarense Ignácio de Loyola Brandão dedicou-lhes uma crônica do Estadão, em 2001. Ficaram boas provavelmente quando ficaram douradas.
Enfim, filosofamos no bar das coxinhas naquele distrito bucolicamente esquecido de Araraquara, enquanto aguardávamos tão fina iguaria. Aguardávamos porque tínhamos pedido treze coxinhas, tiveram que fritar na hora. Aproveitei para ler a crônica, devidamente ampliada e emoldurada na parede do boteco. Infelizmente só achei uma versão dela para assinantes do Estadão, mas, quem se importa? Nem é tão brilhante assim... Em todo o caso, existe a comunidade das coxinhas no Orkut. Bom, li a crônica inteira, coisa de uns três minutos, e quando me virei, lá estava o velhinho, bermuda branca de médico à paisana, camiseta polo, sobrancelhas gigantes e brancas, com meia coxinha na mão, falando com a bajuladora dona do bar. Pediu mais cinco coxinhas. Ela calmamente pegou as que estavam no nosso prato esperando as outras e deu pra ele dizendo, "Ah, se é pro Loyola é pra já!". Sim, fomos roubados por um escritor famoso. Quantas pessoas podem dizer isso? Ainda por cima no próprio cenário de sua crônica!
Estou lendo umas histórias do Dostoiévsky, vou tomar muito cuidado, não quero nenhum russo mexendo no meu strogonoff.

26 dezembro 2004

Manchetes

No western Os Imperdoáveis, um pistoleiro inglês chamado English Bob, depois de ler uma manchete sobre um atentado contra o presidente americano, provoca uns cowboys dizendo que os EUA deveriam ter uma rainha. "Ninguém atira numa rainha", "A honra e a majestade da realeza, você sabe... Já um presidente, por que não atirar num presidente?"

Daí eu me levanto e, ao checar meus emails, tropeço nessas manchetes da Reuters:

21 dezembro 2004

Pipoca

Todo mundo diz que a indústria do cinema de Hollywood está decadente, que crises e crises diminuem o número de lançamentos, que hoje em dia quem manda mesmo é a tv, vide Band of Brothers e Angels in America da vida. Um belo dia, por acaso, quando eu passava pelo sempiterno oráculo do cinema Internet Movie Database (primo do grande deus Google), na minha eterna obsessão por listas, quando procurava a famigerada Top Movies of All Times (só pra poder discordar de um ou dois títulos), acabei caindo nas maiores bilheterias de todos os tempos e um detalhe me chamou a atenção: dos 258 filmes listados, 29 filmes são dos anos 80, 10 são dos 70 e apenas 2 são dos 60 (curiosamente, 101 dálmatas e Jungle Book, dois desenhos da Disney). Ponto. O resto é tudo dos anos 90 pra cá. E, como dá pra ter uma idéia pelos 10 mais aí embaixo, uma boa parte é do século 21, e isso porque não chegamos nem na metade da primeira década. Pode ser que o número de lançamentos por ano tenha diminuído, mas o que importa pra indústria automobilística, fazer mais carros ou ter mais lucro? Enfim, seria um complô para nos deixar com pena dos grandes estúdios? Seria a inflação? Seria tudo culpa da Coca-Cola?

1.Titanic (1997) $1,835,300,000
2.The Lord of the Rings: The Return of the King (2003) $1,129,219,252
3.Harry Potter and the Sorcerer's Stone (2001) $968,600,000
4.Star Wars: Episode I - The Phantom Menace (1999) $922,379,000
5.The Lord of the Rings: The Two Towers (2002) $921,600,000
6.Jurassic Park (1993) $919,700,000
7.Shrek 2 (2004) $880,871,036
8.Harry Potter and the Chamber of Secrets (2002) $866,300,000
9.Finding Nemo (2003) $865,000,000
10.The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring (2001) $860,700,000

Outro detalhe interessante é que esse top 10 é dominado por duas franquias literárias, Lord of the Rings e Harry Potter. Mas olhe só, enquanto o Frodo ganha mais e mais dinheiro a cada filme, o menino com o raio na testa faz o inverso, tendo o último filme (dizem que é o melhor. Eu não vi ainda) ficado lá atrás na 14a posição. Isso quer dizer que a história do hobbit ficou mais interessante a cada filme? Teve gente que foi ver O Retorno do Rei sem ter visto A Sociedade do Anel? Ou simplesmente é só um bando de nerds que gostou tanto dos últimos capítulos que pagou pra ficar 7 horas vendo duas vezes o úiltimo filme? E o bruxinho, piorou?
Pra fechar o post, nada melhor que dar uma olhada no Bottom 100, com os 100 filmes mais mal votados da história. Nossos conhecidos Street Fighter, Mulher Gato e Superman 4 estão lá, mas o mais legal é procurar filmes bizarros como Santa with Muscles, estrelando Hulk Hogan ou então o curioso The Brain That Wouldn't Die, que deveria ganhar um prêmio só pelo título. Santa Claus Conquers the Martians dispensa comentários. Se a gente se esforçar e conseguir 625 votos ruins pra Xuxa a gente consegue colocar ela na lista. Boa sorte.

16 dezembro 2004

Vida na Favela

Outra do diário de missionário, dia 18 de julho de 2003, em Inhaúma, Rio:
A vida na favela é estranha. Primeiro: tem muita gente lá. Muito mais do que deveria. Segundo: é um lugar organizado, por incrível que pareça.
Já passei por vários tipos de favelas, só hoje estive em duas, no Urubu e na Alvorada, do complexo do Alemão. A do Urubu é mais clássica, um morro, casas amontoadas entre a lama e as rochas, um bar aqui, uma padaria ali, tudo num clima meio preto e branco, meio cru, talvez pelo verde do matagal do morro. Já a Alvorada é diferente, é mais desenvolvida, mais colorida. Tem pelo menos dez vezes mais gente lá. Difícil achar um palmo de terra que não seja ocupado pelos milhares de casas, bares, mercados, locadoras, lojas de concerto de eletrônicos e igrejas, muitas igrejas, literalmente centenas delas. Nas ruelas estreitas, as kombis de lotação dividem espaço com o formigueiro humano, já que não existe calçada, e com os carros e motos dos traficantes e de uns poucos mais afortunados, mas que não podem ou não querem abandonar o lugar. Funk carioca é a trilha sonora predominante, permeado com uma música evangélica aqui e o som da novela da Globo ali. É um outro mundo, mais colorido que o Urubu, mas não tão onírico quanto a Cidade de Deus, onde o tempo pára e nem o barulho dos carros da via expressa ao lado consegue impedir o clima de dimensão paralela, de olho de furacão, aquela terrível sensação de que a calmaria aparente está prestes a desmoronar. Tudo isso controlado pelo tráfico, o Grande Irmão de todos os morros. Tanta gente ruim, mas, mais ainda, tanta gente boa, tanta gente enganada...

03 dezembro 2004

Família Brasil

Schumacher era o nome, mas podiam chamar-se Santos, Almeida ou até Silva. Aliás, ela era Silva, por parte de mãe, para ser específico, portanto um nome suprimido no casamento. Restou-lhe Magalhães, que não a deixava descontente de forma alguma, principalmente depois que, vinte anos antes, aprendera que havia um estreito com seu nome. Imeginem só, ter seu nome num estreito! Naquela época ocorreu-lhe como seria interessante se ela se casasse com alguém de nome Gibraltar, o que, todos sabemos, não aconteceu. Um nome ainda mais incomum estaria a sua espera no altar.
Por incrível que pareça, o que o nome tinha de incomum, seu portador tinha de comum. Viviam como o mais normal dos casais. Ele trabalhava num banco e gostava de futebol. Ela vendia cosméticos e gostava de... cosméticos. Mas não em excesso.
Se algum deles tivesse curiosidade suficiente, descobriria que o absolutamente mediano Sr. Schumacher (tão mediano que preferia ser chamado de Jorge mesmo) descendia, na verdade, do extraordinário Piotr Rabinovich Svidrigáliov, um dos maiores oradores do judaísmo da época do tzar Alexandre II. Um homem tão extraordinário que, após conseguir a confiança da comunidade judaica (ao ponto de ser designado Rabino de toda São Petesburgo) e o respeito e apreço da própria corte católica ortodoxa do tzar, se aproveitou de uma brecha burocrática e embolsou, sob a proteção de seus amigos da corte, dinheiro suficiente para sustentar gerações. Infelizmente sua fortuna não durou muito, já que o tzar fora assassinado e seus amigos da corte estavam ocupados com assuntos mais importantes do que garantir proteção a um Rabino mulherengo. Sim, ele também era mulherengo. Aliás, esta peculiaridade foi o que desencadeou seu exílio voluntário na Prússia. Sua esposa desaprovava firmemente seus maus hábitos, principalmente se eles deixassem de ser acompanhados pelo bom hábito de dar presentes caros para se redimir. Por conta disso, ela o rejeitou e destruiu sua reputação na sinagoga com artimanhas que passaram pelo óbvio boca-a-boca feminino até a histórica interrupção da leitura pública da Torá por um panelaço que o assombrou por décadas.
Pobre (pobre não é o termo correto, seu colchão nunca se esvaziara completamente) e literalmente sem amigos, partiu para a Prússia, onde começou sua nova vida como humilde sapateiro (daí sua nova alcunha, Shumacher). Adquiriu alguma reputação na sinagoga local devido a sua incrível capacidade discursiva, mas nunca revelou sua verdadeira história. Ainda assim foi "empurrado" por seus novos amigos, tão impressionados com sua eloqüência e carisma, ao posto de líder local. Mais uma vez, por culpa agora de rixas com o imperador prussiano por causa de desvio de impostos, abandonou sua nova esposa e fugiu para o lugar mais distante que já tinha ouvido falar, outra cidade com nome de santo, São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil.
Aqui, este extraordinário homem se rendeu aos encantos da terra fértil, da comida boa e da filha de escravos mais bonita que já teve notícia. Esqueceu da Rússia, esqueceu da Prússia, esqueceu até de sua eloqüência e passou a deixar-se levar pela vida mansa do país tropical. Só não se esqueceu que a melhor forma de se levar essa vida mansa era mamar nas tetas do governo. Foi um dos melhores funcionários do Banco do Brasil por mais algumas décadas. Seu filho seguiu seus últimos passos, exceto pela falta do adjetivo "melhores". Seu neto, Jorge, do avô só tem o (falso) nome e a profissão.
E ela ainda se pega sonhando em ser a sra. Magalhães Gibraltar.

29 novembro 2004

Million Dollar Baby

E não é que o salário mínimo está acima dos 100 dólares?! Já estão planejando vender toneladas de nozes, passas e outros produtos finíssimos made-in-lá-fora. Vitória, finalmete. Como diria nosso amigo Will W., Liberdaaaaaaaaaaaaade!

25 novembro 2004

Jogo da vida

De todos os esportes, o futebol é o que mais se parece com a vida. Primeiro, você não joga sozinho. Depois, o jogo é uma sucessão de lances, quase sempre frustrados, em direção a um objetivo. São 90 minutos de jogo, mas os pontos altos raramente passam de dez por cento disso. O resto é só montar estratégia, se preparar, tentar, se frustrar, tentar de novo...
Vôlei, basquete e afins são bem mais dinâmicos, sempre tem pontos, sejam a favor, sejam contra. É uma sequência tão frenética de acertos e erros que quase não dá tempo de respirar. Ou de refletir.
O futebol é mais lento... você corre, olha o lance, pára, acha que a bola vai chegar... não chega. Mais ou menos quando um amigo seu te liga e pergunta, e aí, como vão as coisas? Você pára, pensa... ah, nada de mais. Um trabalho aqui, uma balada com amigos ali, falar de política, comer um sanduíche, todo o planejamento e a expectativa de melhora de vida que NÃO acontece do dia para a noite... nada de mais.
Ah, fale por você mesmo - alguém pode dizer - a minha vida não é tão chata, seu perdedor medíocre. Bom, não é chata. Só é lenta. E se há alguma vantagem, é poder parar pra refletir.
Acho que é por isso que não gosto de futebol. Já tenho realidade demais todos os dias. Agora, com licensa, vou armar uma jogada e esperar um gol pra amanhã.

15 novembro 2004

Clichês ao molho pardo

Já disse alguém importante, que obviamente eu só vou lembrar o nome depois de ter publicado esse post, provavelmente no meio de um banho, que só há duas maneiras interessantes de se usar clichês: melhorá-los ou ridicuarizá-los. Como Fazer Um Filme De Amor se baseia inteiro nessa segunda opção. Pega todos os ingredientes de um filme bobo e água-com-açúcar, mistura bem e joga na tela, com a narração do Paulo José, pra dar liga. Os atores são bons, as caricaturas são engraçadas, o narrador é ótimo, mesmo assim, ficou faltando sal. Sem contar alguns momentos inspirados, como letreiros dizendo "plágio de O Iluminado" quando o bandido quebra a porta e mostra a cara de louco, as sacadas inusitadas não superam a obviedade dos clichês (pleonasmo?), que são quase sempre mostrados de forma bem didática. Provoca um sorrisinho de canto de boca, no máximo. Fica devendo bastante em ironia (ironicamente, mesmo porque ela deveria ser o motor do filme) pra aquele quadro interessantíssimo do Fantástico, Fazendo História (ou alguma coisa assim), com a própria Denise Fraga, onde as histórias coletivas, recheadas de clichês, são ridicularizadas pelos próprios personagens. Uma pena desperdiçar ingredientes tão bons quanto Marisa Orth e André Abujamra.

11 novembro 2004

Calvinianas

Verbificar esquisita o idioma.

Onírico

De manhã, não conseguia escapar do maldito trânsito. À tarde, não conseguia escapar do maldito chefe. Mais à noite, durante a palestra na faculdade, não escapava do maldito tédio. Na cama, aliviado, pensou que iria escapar do maldito sonho dentro do carro parado, com o chefe a lhe palestrar. Pensou se era sua mente galhofeira e vingativa, mas como sabia que não era masoquista, constatou que o que lhe faltava era imaginação.

04 novembro 2004

O Futuro da Nação

Respondendo à pergunta: Na sua opinião, o que está faltando para o cinema brasileiro se tornar mais popular?
Enquanto o governo não consegue implantar o revolucionário programa "Troque sua arma por uma mini-DV", podemos começar com "Troque seus CDs do Zezé di Camargo* por ingressos de cinema". Para facilitar, as próprias bilheterias dos cinemas recolheriam os CDs, que seriam reciclados para a fabricação dos DVDs dos mesmos filmes em cartaz. Teremos um futuro promissor.

* Válido somente para Zezé di Camargo, toda a sua família, todos os seus amigos, sertanejos ou não, todo o Funk Carioca, Axé, pagode, bandas popularescas de todos os gêneros e qualquer tipo de produção cultural prejudicial à saúde mental.

30 outubro 2004

Advogado do Diabo

A História é contada pelos vencedores, como já disseram. Todo mundo sabe que os comunistas soviéticos foram mesmo a encarnação da besta e que o Cabral e cia. só queriam trazer a civilização pro Novo Mundo. Certo? Claro que não, pergunte pra elite intelectual do país que eles te explicam que o esforço dos historiadores hoje é dar a voz para os que perderam também, pra encontrar uma verdade mais pura. Ótimo, agora a História está sendo contada também pelos perdedores, que bom!
Será mesmo? Acho que às vezes a mídia usa esse politicamente correto com propósitos não tão corretos assim, políticos ou não. Explico: Quantos filmes sobre atrocidades contra judeus você já viu? Quanto tempo os jornais ficam sem falar alguma coisa sobre a ditadura militar aqui no Brasil? Existe algum meio de comunicação no país que tenha, alguma vez, falado alguma coisa boa de George W. Bush? Não estou dizendo que nenhum deles defenda causas erradas, alguém em sã consciência dificilmente iria defender Hitler e seus amigos. No entanto, evocando aquela melhor frase do Nelson Rodrigues, "toda unanimidade é burra".
A mídia é unânime em certos assuntos, e a minha preocupação não é a injustiça contra os vilões, mas sim a parcialidade com que são tratados os mocinhos. Seria plausível (fora da palestina) um filme que mostrasse os podres da hegemonia semita na mídia americana e em Israel? Você patrocinaria um filme que mostrasse o outro golpe de estado que estava sendo planejado por socialistas do Brasil se não acontecesse o militar antes? Eu também não gosto do Bush, mas peraí, parece que não nos dão nem a chance de escolher. Vomitam podres dele na tela todos os dias, e mesmo assim, 50% dos eleitores americanos têm (ou acham que tem) argumentos suficientes para votar nele. Será que são todos tão alienados assim? Eu sinceramente espero que não. Pelo bem da opinião pública.
É nessas horas que o chato do Diogo Mainardi é útil. A mídia torce pro time certo, só é um pouco fanática demais.

22 outubro 2004

Sociedade inteligente

O papel da família é transmitir a herança da humanidade para o indivíduo, para que ele possa se inserir na sociedade e colaborar para ampliar aquela mesma herança. Mais ainda: treina-lo para administrar os estímulos internos e externos que vão fazer com que o menininho seja feliz para o resto de sua vida. Para ajudar os pais nessa tarefa tão ambiciosa, apareceu uma instituição chamada escola. Lá, junto com outras dezenas de coleguinhas, nosso menininho vai ser bombardeado com informação, e, de quebra, vai ter os benefícios de um convívio social numa micro-sociedade, um campo de testes onde acontecem os piores conflitos e dilemas existenciais imagináveis, que tem seu clímax na chamada hora do recreio. Se nosso menininho for mal na absorção e capacidade de análise da informação, ele tem a chance de reaprender tudo outra vez através do popular recurso da repetência, também conhecido como “levar bomba”. Agora, se ele não tiver desenvoltura suficiente para se dar bem também naquele micro-cosmo social, que pena, não há muito a ser feito. Afinal, não há avaliação para isso. Piora se nosso menininho não demonstra sua frustração e ninguém (nem seus pais, que estão longe) nota o problema.
O menininho chega em casa, cansado da companhia opressiva dos seus colegas e procura quem lhe dê a atenção e os cuidados merecidos, alguém que não fale dele, mas para ele, alguém que lhe distraia das confusões da vida, sua amiga, a televisão. Lá ele aprende como todos gostam dele, estão sempre sorrindo, sempre falando com ele, com todo o carinho e respeito que ele merece, além de ter sempre um desenho legal passando. Aquilo sim é que é vida, todas aquelas cores, aqueles brinquedos que se mexem e que não quebram como os dele, brinquedos grandões e bem feitos, não feiosos como os que estão em seu quarto. Ah, se ele pudesse viver lá dentro, junto com tanta gente legal, tanta coisa pra ver... Ele pediria à mãe para leva-lo ali, mas ela ainda não chegou do trabalho. Alem disso, ela sempre está cansada. Tudo bem, já vai começar outro desenho.

20 outubro 2004

Top pop

Somos um bando de porcos elitistas. Sim, toda essa história de ser contra a indústria cultural de massa (leia-se ser contra a britney e o cpm22) na verdade é medo de cair do pedestal. Quantas vezes já ouvi (e falei) coisas do tipo, pô, o som dos caras é bem legal, mas tá passando até na mtv... é claro que não gosto de banalização e continuo achando que ouvir another brick in the wall seis vezes por dia pode não deixar a música ruim, mas é, no mínimo, um desrespeito com o propósito da canção, que é dar um chute no estômago da sociedade.
O grande mal é que parece que nos ofendemos quando uma música, filme, ou livro cai na boca do povo. Antes ele era só meu, agora eu tenho que dividir com eles? Como assim? A gente não vive dizendo que quer ver mais cultura na tv? Estive pensando em um exemplo de boa programação que fez sucesso. Pra mim, nada foi mais importante que os programas infantis da cultura. Do Ra-Tim-Bum ao Beakman, eles formam boa parte da minha bagagem cultural até hoje. Daí na USP eu encontro um monte de gente que também não perdia um Mundo da Lua, que adorava ouvir o Marcelo Tas (e continua acompanhando até agora) e que vivia repetindo as piadinhas sarcásticas do rato Lester. Parece que fez sucesso, e essa legião toda está relativamente bem encaminhada.
Não pode ser tão ruim assim encher o povo de Radiohead, que, diga-se de passagem, eu só conheci naquele comercial do Carlinhos. Tente não se indignar quando passar o caminhão de gás tocando Für Elise, na melhor das hipóteses alguém gosta tanto que vai atrás de aprender piano. Na pior, agradeça por não ser alguma da Ivete Sangalo.

15 outubro 2004

Seleção Natural

Belo debate o de ontem da Marta versus Serra. Um tentando jogar areia nos olhos do outro a cada pergunta. Seria engraçado se não fosse tão previsível. Não é exatamente um debate de opiniões, é mais uma tentativa de expor o máximo possível de argumentos, fundamentados ou não, a favor de um e contra o outro antes que cortem o som do microfone. Sim, é um jogo sujíssimo, mas uma vez que na democracia governa quem conquista mais gente, a jogada é válida.
Mas será que conquista mesmo? Acredito que a principal função desses debates acaba não sendo aumentar o número de partidários, mas sim fortalecer os atuais eleitores. Sim, porque quando tucanos ouvem a petista embonecada falando, automaticamente uma espécie de filtro se instala, o filtro de “eu sei que ela só vai falar bobagens, então vamos ver aonde eu posso quebrar o argumento dela”, um filtro preconceituoso, a tal ponto que nada de bom vai ser absorvido. Por outro lado, quando fala o tucano-mor de sorriso amarelo, outro filtro, também preconceituoso (num “bom” sentido, neste caso), aparece – o filtro do “olhe como ele vai acabar com os argumentos fracos dela e se mostrar o melhor candidato sem nem suar”, e nenhum deslize dele vai ser levado em consideração. Exatamente o mesmo - obviamente de forma inversa - acontece com os partidários da prefeita. Acabamos por ouvir quase que somente o que queremos ouvir, e relevamos qualquer informação desagradável. E isso em qualquer situação. Se sou fumante e defensor dessa indústria, por exemplo, vou ver qualquer manifestação anti-tabagista com um sorriso cínico no rosto, procurando falhas e incongruências em suas propostas enquanto recebo com prazer qualquer defesa, mesmo que fraca, ao meu modo de pensar.
Assim, sem idoneidade no julgamento, nosso mundo se torna menor, e a possibilidade de sermos surpreendidos com um argumento mais sensato da oposição aumenta bastante. Moral esopiana: Antes de condenar o lobo, tente vestir a pele dele por um tempo.

04 outubro 2004

Posers e Eufemistas

Filme de arte não é confuso, é complexo.
Não tem maus atores, tem atuações cruas.
Não tem comparações ridículas, tem metáforas existencialistas.
Não tem imagem tremida, tem dinamismo e cumplicidade com os personagens.
Não é longo e arrastado, é meticuloso e angustiante.
Não tem um roteiro raso, tem uma proposta simples.
Não tem um diretor drogado, tem um gênio visionário.
E, acima de tudo, um filme de arte não é chato, você é que não entendeu.

01 outubro 2004

Multi-eu

Os glóbulos brancos sempre me intrigaram. Milhões de células correndo pelo nosso corpo, só esperando encontrar alguma coisa estranha, pra depois, patrioticamente praticar suicídio, levando com eles o mau elemento. Abnegam de sua curta existência por um bem maior, a integridade da sociedade em que vivem. É isso, sociedade. A única coisa que distingue nossas células de uma colônia gigante de bactérias ambulante. Cada um tem seu papel específico, e o cumpre quase sempre sem reclamar.
Mesmo assim, como toda sociedade, nem sempre todos pensam da mesma maneira. Nem todos tem a mesma opinião sobre tal e tal assunto. E pior, isso não acontece apenas entre "classes", como células do fígado querendo uma coisa e as malditas células do cérebro querendo mais caipirinha. Há divergência também entre células do mesmo tipo. Isso acontece especialmente com os neurônios, os administradores e a elite cultural dessa nação-corpo.
O curioso é que, até onde se sabe, não há uma parte específica do cérebro encarregada da memória, por exemplo. Ou seja, todos os neurônios compartilham da informação, e, da mesma forma que cada um de nós testemunha um fato de maneiras diferentes, os neurônios também acabam por registrar mais de uma versão de um acontecimento, por exemplo. Isso pode retornar para o mundo como incoerências, idéias conflitantes e até mesmo disfunções de personalidade. Assim, não tem um homenzinho na minha cabeça, tem alguns milhões deles, que se agrupam e formam partidos, comitês, ongs e lobbys que, apesar de nem sempre se entenderem, convivem em relativa paz dentro de um eu, que, por influência deles, ora é de esquerda, ora de direita, ora só quer dormir e comer, ora se preocupa com as lamúrias da existência. Fica mais interessante quando tudo isso acontece ao mesmo tempo, afinal, o regime não é representativo e nem tem uma cadeira de presidente pra alguém sentar.

24 setembro 2004

Versão brasileira


Acredite ou não, esse é o Mel Gibson. Na Globo, pelomenos. Todas as falas do William Wallace são, na verdade, desse tiozinho aí (que sim, parece o Saddam. Ou aquele ator mexicano). Tudo bem, o cara trabalha legal dentro das limitações da dublagem, mas peraí, como eu vou dizer se gostei ou não da atuação do Mel Gibson se eu ouvi o bigodudo ao invés dele? O mais engraçado é a baixa rotatividade dos dubladores. Se eu fosse cego e estivesse assistindo a um filme na Globo e mudasse pro SBT acidentalmente (não vi o controle remoto ao sentar), corro o risco de achar estranho que a esposa traída e humilhada pelo marido policial de repente tenha dito "Os orcs estão se aproximando! Corram!".
Que tal deixar o áudio original e "dublar" os filmes visualmente? Afinal, ficaria mais brasileiro, geraria mais emprego no país, etc... Podemos até deixar o figura aí escalado pro papel do Mad Max 4. Chamamos a Regina Casé pro papel da Angelina Jolie e o Jô Soares pro Eddie Murphy (afinal, ninguém melhor que um comediante pelo outro, não?).
Ouvi dizer que, lá pelos anos 70, foi firmado um acordo entre algumas emissoras pra exibição de filmes dublados, uma questão de inclusão social, afinal, até os analfabetos tem direito a um bom filme. Mesmo que seja pela voz do bigodudo.

23 setembro 2004

Um lado da história

O mundo está cada vez pior. Na minha época o mundo era diferente. Não tinha essa violência toda.
Não tinha? Quer dizer que não havia roubos, assassinatos sanguinários, estupros, suicídios, lugares perigosos, pobreza? Álvares de Azevedo foi mais criativo do que se imagina, então, já que ele "inventou" atrocidades do nível da necrofilia, que aconteciam aqui mesmo, em São Paulo. E na antiguidade então, nem se fala. Tem tanto massacre descrito na Bíblia e em outros registros antigos que faz qualquer grupo decapitador iraquiano parecer os irmãos metralha e o Bin Laden, o Bozo.
O fato é que hoje nós ficamos sabendo do que acontece no mundo. O acesso à informação é muito maior, e isso nos dá a sensação de que o mundo é o nosso quintal. Eu assisti às torres gêmeas caindo, ao vivo! Foi tão próximo! Mas espera, eu nunca vi o World Trade Center. Nunca fui a NY pra conferir. O incrível é que posso ver pela tv o quanto mudou a paisagem da região, ou pior ainda, posso até sentir o vazio que ficou no lugar, posso sentir que tudo ao meu redor mudou depois daquele dia, sem nunca, nunca ter posto o pé na Big Apple. Se eu vivesse num lugar ou época sem comunicação de massa, pra mim um incidente daquele não ia ter a menor diferença.
Ah, a ignorância salvadora... se eu não sei que aconteceu, então não aconteceu.
Assim, pra quem vê Cidade Alerta, São Paulo é a selva de pedra antro da violência e da tragédia. Pra quem acompanhou as comemorações dos 450 anos da cidade no início do ano, a cidade é bonita, cosmopolita, educada, cultíssima, e é até rica em áreas verdes. É a mesma cidade. É o mesmo mundo.
Pensando bem, sim, a violência mundial aumentou bastante. Mas a bondade e a solidariedade também. A população foi quem cresceu. Agora são mais de 6 bilhões escolhendo fazer coisas boas e ruins, as chances de atrocidades acontecerem são as mesmas das boas ações.